Por mais que, evidentemente, o salário seja uma das grandes motivações para um colaborador dentro de uma empresa, é mais do que natural que ele não seja sua única prioridade em âmbito profissional. Movimentos como a “Grande Resignação” e fenômenos como o “quiet quitting” somente reforçam que nem mesmo uma remuneração justa é capaz de reter talentos quando o negócio deixa a desejar em outros aspectos.

Segundo um estudo do Gympass, para 83% dos mais de 9 mil respondentes de nove países o bem-estar é tão importante quanto o salário. Não à toa, 85% dos entrevistados manifestaram que uma empresa que foca na saúde e na qualidade de vida os motivaria a permanecer, enquanto 77% abririam mão de um trabalho que não tem preocupação com seu conforto e equilíbrio entre vida pessoal e profissional.

Depois dos anos pandêmicos enfrentados pelo Brasil e pelo mundo, os benefícios e as iniciativas de bem-estar, que já eram temas recorrentes antes da Covid-19 impactar o planeta, foram ainda mais evidenciados. Estudos de entidades como a ISMA-BR identificaram aumentos nos diagnósticos de enfermidades mentais durante a pandemia, como depressão, ansiedade, Burnout e outras.

Para 2023, que não tende a ser um ano marcado por nova influência do coronavírus – embora o recente aumento de casos em algumas regiões do Brasil e do mundo mantenham o alerta ligado -, qual deve ser a visão das organizações em relação aos cuidados com o colaborador? As ações devem crescer ou podem desacelerar? É para entender diante de qual contexto o mercado brasileiro estará que o RH Pra Você falou com Gustavo Arns, cientista da felicidade e especialista em implementação de bem-estar nas empresas. Confira o papo:

Gustavo Arns, cientista da felicidade e especialista em implementação de bem-estar nas empresas

Gustavo Arns, cientista da felicidade e especialista em implementação de bem-estar nas empresas

RPV: Na sua posição de um especialista em felicidade, há uma resposta para o dilema que divide opiniões sobre ser ou não possível ser feliz no trabalho?

Arns: A ciência afirma que, sim, é possível ser feliz no trabalho. Temos muitos exemplos de pessoas que se sentem felizes em sua rotina profissional, mas infelizmente essa não é a regra. Pesquisas globais chegaram a apontar índices de 80% de insatisfação no trabalho. E o trabalho tem sido fonte de adoecimento, o Burnout é uma prova disso.

RPV: As empresas estão prontas para falar de felicidade?

Arns: Por conta da pandemia, principalmente, muitas empresas se voltaram à busca de compreender o que é felicidade, bem-estar, saúde mental e como colocar isso em prática. Estudos apontam os benefícios disso tudo. De 2016 para 2022 o cenário mudou drasticamente. Poucas empresas tinham abertura para se falar de felicidade e o solo, via de regra, era bastante árido, porque era um sentimento de “o que está sendo falado?”. É uma herança cultural o trabalho não ser visto como um lugar de felicidade.

Quando há ideias tão impregnadas em nosso subconsciente, é preciso que sejam feitas novas análises racionais. Hoje, as barreiras caíram e as empresas estão abertas a essa conversa, assim como os colaboradores, pois o tema chegou aqui no Brasil. Hoje há pós-graduações sobre o tema.

As empresas estão na etapa de explorar o que fazer, algumas com mais sucesso e outras com menos. Algumas estão tateando, principalmente na questão dos benefícios. Vemos aulas de yoga, meditação, entre outras, mas embora os benefícios ajudem, eles não atuam na raiz do problema. O investimento no bem-estar tem um forte nexo de causalidade com dois aspectos: a satisfação do cliente e a produtividade. Isso reflete em queda no absenteísmo, retenção de talentos, menos gastos em planos de saúde, etc.

RPV: Como levar para a prática esse olhar de que é possível criar um ambiente favorável à felicidade, ao bem-estar e ao engajamento?

Arns: Com a formação de lideranças que impactem diretamente na cultura. Diversas empresas se movimentam nesse sentido e aquelas que são estruturadas já têm longas formações de liderança que incluem a ideia da liderança humanizada, na qual entra bem-estar, saúde mental, ferramentas como a comunicação não violenta e outras possibilidades.

Outras empresas já apostam em palestras e formações específicas, embora a palestra seja muito pouco, pois perde o impacto. É preciso que seja algo vivido no dia a dia.

RPV: Quais cuidados devem ser tomados para que a formação da liderança, de fato, vise o bem-estar?

Arns: Os trabalhos mais profundos e longos que eu fiz, no sentido de continuados e com maior sucesso, foram aqueles em que a liderança esteve muito comprometida. Foram trabalhos verdadeiros, mas porque, por algum motivo, aqueles líderes já tinham experimentado os benefícios da ciência da felicidade, assim se dando conta que é um trabalho humano que tem o sucesso financeiro como efeito colateral.

A pessoa em um estado interno positivo, quer dizer, fisicamente saudável e mental e emocionalmente equilibrada, naturalmente vai atuar melhor em todas as áreas da sua vida. O líder que se dá conta disso tem o interesse de levar isso à empresa. Isso vem da experiência, porque nenhuma teoria convence.

Em um dos trabalhos que fiz, o gestor me pediu para não falar de produtividade e focar na felicidade. Para ele, o importante era o profissional estar feliz e, se o colaborador desse conta que não estava feliz naquele local de trabalho, poderia sair e estava tudo bem. Esse é um gestor maduro.

Há empresas que chamam para fazer palestras em um domingo e, obviamente, é um trabalho que não dará certo. Se você não acha o tema importante o suficiente para tirar uma hora de trabalho do colaborador, então não tem como funcionar. A liderança tem que estar envolvida com o trabalho, pois não adianta contratar e não participar. É uma mensagem passada de “isso é importante, mas não muito” e isso é notado pelos colaboradores.

RPV: O quanto o líder deve envolver as pessoas?

Arns: Parte importante do processo de levar não só o conhecimento, mas as práticas de bem-estar e felicidade às companhias está em ouvir os colaboradores. O gestor pode chegar com um programa muito pronto, mas descolado da realidade. Podemos trabalhar ao lado de pessoas por dez anos e sequer as conhecermos.

Há possibilidades de pesquisas para que haja um ponto de partida e, depois, diversas ferramentas e modelos a serem aplicados e que surtirão efeito a partir de uma real compreensão.

RPV: Quais as missões do RH nesse processo?

Arns: É difícil você ver no financeiro alguém que diga “eu não gosto de números”. Pode ter, mas é muito difícil. Se você pode escolher, se não gosta de números vai optar por outra coisa. O RH está cheio de pessoas que não gostam de pessoas. Mas isso nem sempre é culpa do profissional e não necessariamente ele desgosta do contato com o colaborador, o que pesa é ele não ter tempo para isso. O fato ocorre quando o setor está desorganizado, quando há acúmulo de funções, então isso precisa ser avaliado. Uma gestão humanizada pressupõe um tempo para que se possa humanizá-la.

Se faz necessário reorganizar o setor e fazer um diagnóstico de quem curte realmente conversar com os colaboradores, atendê-los e entendê-los. O trabalho de RH não é o de atendimento terapêutico, mas muitas vezes é quem fará o encaminhamento. Empresas que fazem um bom trabalho de felicidade e bem-estar têm um RH forte, isso é muito nítido. Há um apoio muito próximo do RH, que pode ser a área de entrada desse processo.

RPV: Na sua percepção, uma vez que a pandemia acelerou discussões e ações em relação ao bem-estar nas empresas, sem ela as iniciativas podem sofrer algum downgrade em 2023? Ou seja, as organizações podem olhar um pouco menos para isso?

Arns: Me considero otimista, mas realista. O que quero dizer é que acredito no melhor, mas com os pés no chão. Minha impressão é que esse movimento [de promoção do bem-estar] seguirá se ampliando. Muitas empresas falam sobre isso, mas ainda são as grandes e as das capitais. Nas pequenas empresas, até com base em trabalhos que faço em parceria com o Sebrae, percebo que esse movimento ainda não chegou. É um tema bastante novo para muitos gestores. Diria, por exemplo, que entre 15% e 20% de um auditório levantam a mão quando pergunto quem já ouviu falar da ciência da felicidade.

Porém, como o tema está se instalando e as empresas fazendo experiências, naturalmente começa a existir um intercâmbio de informações. Até por um movimento de mercado, RHs que conversam e os conteúdos das mídias, isso faz com que as empresas tenham mais base para movimentos práticos.

Isso está ligado também à economia. Se há crescimento, as empresas conseguem fazer um pouco mais. Bem-estar fica para depois quando o modo sobrevivência é ativado, pois vários negócios ainda não veem a conexão direta entre bem-estar e o sucesso financeiro.

RPV: O quanto esse movimento precisa maturar?

Arns: Aqui no Brasil muitas vezes as políticas das empresas são muito personalizadas. A figura central que carrega o tema ao sair da organização faz com que o movimento se disperse. Sinto também que não chegamos ao fundo do poço, ou seja, ainda seguiremos adoecendo. Nesse pós-pandemia a crise da saúde mental ainda continuará e com isso níveis de ansiedade, depressão e estresse devem continuar crescendo, o que obriga as pessoas a buscarem soluções.

Por Bruno Piai