‘Novo normal’, velhos problemas. Com o peso da pandemia para justificar que muitas empresas adotassem um modelo de trabalho remoto – e para algumas descobrirem que o teletrabalho pode, sim, fazer parte de sua realidade de forma satisfatória -, são inúmeras as discussões corporativas a respeito de quais mudanças estarão ou não presentes em sua cultura organizacional após a crise da Covid-19 for amenizada. Benefícios flexíveis, escala híbrida, happy hour virtual e custeio de infraestrutura para trabalho em domicílio são alguns dos temas em debate e em ação. Porém, nas reuniões conduzidas por distopias ou utopias sobre o home office, fica um questionamento importante: o assédio é tema que integra o debate?

De acordo com o entrevistador forense e advogado especialista em assédio moral, André Costa, o trabalho remoto cria, muitas vezes, a ilusão de que o assédio é um fantasma exorcizado ou, ao menos, um problema que ‘a distância naturalmente resolve’, contudo, não é necessário um escritório para fazer com que a perturbação se manifeste e cause perigosos impactos.

A gente tem uma ideia preconcebida de que o assediador é o sujeito que grita, destrata, bate na mesa e tem uma conduta ativa. Mas quando as reuniões acontecem de forma remota, o assédio assume certas particularidades que são inerentes ao ambiente digital. Ele se manifesta de forma passiva e, muitas vezes, silenciosa”, diz.

Segundo um relatório feito pela ICTS Protiviti, consultora de gestão de riscos, em 2020 foram realizadas 12.529 denúncias de assédio moral e/ou sexual em ambiente de trabalho. O número é 6,2% superior ao de 2019. Embora o segundo semestre do ano passado – quando as empresas começaram a adotar o anywhere office – tenha tido números 22,7% inferiores ao mesmo período em 2019, ao final do ano as estatísticas já eram as mesmas de quando a pandemia era realidade distante. Além disso, Dados do Tribunal Superior do Trabalho mostram que denúncias relacionadas a assédio moral foram as mais realizadas no país nos últimos 10 anos.

A dinâmica dos assédios ganhou um tom mais sutil porque as pessoas têm receio de gravações comprometedoras e de exposição nos meios digitais, mas a potência do assédio não foi diminuída. “Ao não fazer nada, um funcionário pode estar assediando o colega. A pessoa não fala com o outro, não olha para ele nas reuniões, não atende ligações, não responde e-mails e até deixa de convocar para as reuniões. Ao não fazer nada e excluir o colega, está cometendo assédio moral”, explica Costa.

Combate ao assédio começa pela identificação do problema

De acordo com Renato Santos, sócio da S2 Consultoria, empresa especializada em prevenir e tratar atos de fraude e assédio no trabalho, tão importante quanto não ignorar o assédio ou acreditar que ele é “aceito” ou “não tão incômodo” a distância, é a liderança e o RH ter a capacidade de predizer os novos riscos comportamentais. 

Assédio sexual digital, discriminação online e vazamento de informações confidenciais são alguns exemplos do que configura o assédio na escala virtual. Além disso, muitos gestores “flexibilizaram” comportamentos abusivos por acreditar que, em casa, o colaborador pode e deve estar disponível a qualquer momento. Não são poucos os relatos de colaboradores que alegam ter uma jornada maior de trabalho em suas casas. 

“Levava em média 45 minutos para chegar ao trabalho e uma hora, por conta do trânsito maior, para voltar para casa. Sempre considerei o tempo no trânsito perdido e, quando a empresa que eu trabalhava colocou o time em home office, pensei que ‘ganharia’ esse tempo, mas me enganei. Raramente fazia horas extras no escritório, mas em casa eu chegava a trabalhar três horas a mais por dia. Meu turno começava às 9h e terminava às 18h. 7h meu celular já estava bombardeado de mensagens, reclamações, pedidos por urgência e a demanda ia até depois das 20h. Comecei a ficar extremamente ansiosa e só entendi que era abuso ao conversar com amigos de RH”, conta Adriana* (pediu para não ter sua identidade revelada), que era designer gráfica em uma agência de publicidade e hoje está com processo em andamento contra a ex-empregadora.

A ‘Pesquisa Índice PIR 2020 – Assédio’, realizada antes da pandemia pelo IPRC Brasil com mais de 2,4 mil profissionais, traz um dado preocupante. Para 18% dos entrevistados, a prática do assédio é ‘normal’ e não teriam problema em fazê-la. As razões podem ser tanto culturais quanto ideológicas ou até mesmo inconscientes, uma vez que nem todas as empresas realizam treinamentos de compliance que orientem sobre o que é considerado assédio.

“Todos esses novos desafios levam o compliance ao aprendizado. Aprendizado de que por trás de cada webcam está um ser humano com suas fragilidades e inseguranças, vivendo novos dilemas éticos “dentro” da organização. Daí, cabe à organização criar formas para controlar esses riscos e desenvolver a conscientização de que a cultura ética organizacional deve ser reforçada mesmo em um home office”, pontua Santos.

Assédio profissional não foi amenizado no trabalho remoto

Assédio profissional não foi amenizado no trabalho remoto

André Costa salienta que “desconsiderar uma pessoa de um grupo é uma forma muito forte e eficaz de assediar alguém. Eu tenho gerenciado muitas crises relacionadas a esse comportamento nas empresas. O desprezo, a desconsideração de um ente dentro de uma estrutura também é assédio. Ele está acontecendo de forma mais sutil, mas é uma forma bastante forte e eficaz de fazer alguém ceder e sair de uma corporação”.

Para o advogado, o chamado “assédio velado” ganhou força dentro do contexto do trabalho remoto e se tornou um verdadeiro desafio para empregados e empregadores. O especialista destaca que o RH deve se atentar a todos os ruídos relacionais, uma vez que não é somente um líder que pode ter comportamento assediador com um liderado, mas os próprios colaboradores entre si podem apresentar uma conduta a ser investigada. E, claro, não é incomum também que a própria equipe possa, de algum modo, assediar o seu líder.

“Existem muitos casos em que a equipe assedia moralmente o líder. Nessa situação, é muito mais difícil de identificar porque a conduta não vem em forma de gritos, mas em forma de boicote. A equipe sonega informações, sabota ações e deixa de comparecer a eventos programados pelo chefe”, exemplifica. Costa ressalta, porém, que nem todo tratamento inadequado se configura como assédio moral. “O assédio moral fica caracterizado pela repetição, é uma perseguição contra um alvo específico. Para ser assédio, é preciso ser um comportamento frequente contra uma pessoa específica”.

Punição prevista em CLT

No último dia 10, a Comissão de Assuntos Sociais (CAS), aprovou em decisão terminativa um projeto que inclui na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), ações de combate e punitivas ao assédio dentro do ambiente de trabalho.

O texto desenvolvido pelo senador Veneziano VItal do Rêgo (MDB-PB) e ampliado pela relatora, senadora Leila Barros (sem partido-DF), diz que “o assédio é um abuso perpetrado contra a dignidade da pessoa, que sofre, em primeiro lugar, danos de natureza psicológica e, paralelamente, os de natureza econômica”. O projeto, que inicialmente era concentrado somente ao assédio contra a mulher, foi estendido a todos os gêneros pela relatora.

A decisão estipula multa de R$ 425 a R$ 42,5 mil ao descumprimento das iniciativas que combatam de forma efetiva o assédio no trabalho. Segundo o portal Senado Notícias, as multas poderão ser aplicadas em dobro se houver caso de reincidência, oposição à fiscalização ou desacato à autoridade.