Quando falamos de igualdade de gênero, não falamos só de igualdade salarial. A diferença salarial é só o indicativo mais visível dessa desigualdade.

O assunto está bem polêmico aqui nos últimos, eu gostaria de dizer meses, mas na realidade são dias. E a polêmica se iniciou mais forte quando o prazo de envio do relatório de igualde salarial começou a correr. (Ele venceu dia 08 de março – emblemático?)

falo disso aqui na Coluna desde 2023, quando saiu a lei. E depois quando saiu o decreto e a Portaria, em 2023 também. 

E nenhuma gritaria até há poucos dias. Nem medidas preventivas.

Muita lição de casa para as empresas e para o RH. Já começaram em 2023? 

Hoje, vamos um pouco além da lei, já que as discussões sobre elas têm se mantido somente, infelizmente, no nível de se há riscos ou não de anonimização, e se os dados ferirão alguma governança empresarial.

Algumas empresas já correram para nada publicar [1], mesmo antes de analisar se seus relatórios feririam mesmo algum preceito constitucional, quando poderiam agir com mais dados, mas conseguiram uma liminar para não publicar.

Já outras entidades não tiveram o mesmo resultado, e manutenção da obrigação de publicar foi a decisão liminar [2]

A polêmica está na divulgação de dados de forma desconhecida. Nesse caso, se ao se ter acesso ao relatório final, e, quando o comparar com a realidade da empresa, ele mostrar inconsistência de dados, por exemplo, em vista do uso do arco geral do CBO (o que pode trazer distorções), a empresa poderá agir. 

Mas só o MTe exige tais dados?

A CVM já exige alguns dados mais precisos sobre ESG, dentre eles a igualdade de gênero, e o último relatório publicado constatou que “de cada 100 empresas com ações negociadas em bolsa no Brasil, 55 não têm mulheres em cargos de diretoria estatutária, e 36 não têm participação feminina entre os conselheiros de administração. Em relação a cor e raça, a proporção de companhias com ao menos uma pessoa negra (preta ou parda) em um desses órgãos não passa de 11%”. [3]

Mas a questão agora, numa coluna sobre o Dia Internacional da Mulher, não é se o relatório é bom, ruim, falso ou verdadeiro. 

A questão é: o que você vai fazer ou já fez sobre isso? (leia “isso” como igualdade de gênero) 

O assunto é de hoje?

Em 2016[4], houve a publicação de um guia prático para a área de recursos humanos sobre os “vieses inconscientes” relacionados à equidade de gênero e ao mundo corporativo. A ideia era fomentar essa equidade. O material mostra como os vieses ocorrem e influenciam na seleção, na promoção, e como você pode olhar para ele e analisar a situação tentando o afastar. Ele traz, ainda,  a constatação de que, o que aliás vemos todos os dias, os vieses se refletem em equipes similares, e como, historicamente, na liderança há homens brancos, o modelo se mantém sem uma percepção real e consciente de sua manutenção.

Talvez daí tanta indignação nas empresas. 

Não se diz, excluídos casos patológicos, que as empresas escolhem, propositada e conscientemente privilegiar homens, ou ainda que a seleção e recrutamento, só os escolhe para as vagas ou que eles têm privilégios nas promoções, mas é o que ocorre na prática, e as pesquisas não me deixam mentir sozinha.

Cris Kerr, no seu livro “Viés Inconsciente” [5] traz de maneira bem clara essa situação do inconsciente, e a trabalho de o vencer. “Afinal, como o nome diz, os vieses são…inconscientes. Se tivéssemos fácil acesso a essas informações e pensamentos no cérebro, seria simples começarmos uma transformação dentro de nós e das empresas rumo a um ambiente mais diverso e inclusivo.” 

Como mudar isso? Como fazer a diversidade e o ESG na sua empresa serem de verdade? Como combater tais vieses?

Se a resposta fosse simples não estaríamos aqui com essa lei, essa discussão, e a discussão no mundo todo. 

Pois é, o assunto não é nossa mais nova jabuticaba. A ONU trata do assunto e há o “equal pay day” [6], que em sua página diz: (em tradução livre):

“Em todas as regiões, as mulheres recebem menos do que os homens, estimando-se que as disparidades salariais entre homens e mulheres rondem os 20% a nível mundial. A igualdade entre os sexos e a emancipação das mulheres e das meninas continuam a ser prejudicadas devido à persistência de relações de poder histórica e estruturalmente desiguais entre homens e mulheres, à pobreza e às desigualdades e desvantagens no acesso aos recursos e às oportunidades que limitam as capacidades das mulheres e das meninas. Os progressos na redução deste fosso têm sido lentos. Embora a igualdade de remuneração entre homens e mulheres tenha sido amplamente apoiada, a sua aplicação prática tem sido difícil.” [7]

A União Europeia criou o seu equal pay day”, que marca o dia do ano em que as mulheres passarão a trabalhar de graça em relação a seus colegas homens. Em 2023, foi dia 15 de novembro. [8] No link que eu cito há um vídeo ilustrativo. 

O assunto interessa às empresas também, a OCDE que faz parte da coalização internacional [9] para o “dia de pagamento equivalente”, em tradução livre, e tem um estudo que pode te ajudar muito a iniciar um estudo e análise da sua empresa: “Discriminação de gênero nas normas sociais: Medindo o invisível” (Gender discrimination in social norms: Measuring the invisible). [10]

Nesse estudo o termo chave das instituições discriminatórias é definido no trecho (tradução livre):

“O que são instituições sociais discriminatórias?

Instituições sociais discriminatórias são a complexa rede de leis formais e informais, normas e práticas sociais que restringem o acesso de mulheres e meninas a direitos, justiça, oportunidades de empoderamento e recursos, minando sua influência e autoridade.”

Percebeu a palavra no título? “invisível

Igualdade Salarial - IMG I

Consegue começar a entender por que muitas empresas com ESG e diversidade, por vezes, não percebem sua ineficácia, ou eficácia falha…?

Mas a minha empresa tem “meritocracia”, nós somos “justos”, todos têm “igualdade de oportunidades”?

Eu não respondo, deixo para a Cris Kerr essa missão: “A partir do momento em que entendi como os vieses inconscientes funcionam e como estamos longe de ter igualdade de oportunidades entre as pessoas, parei de acreditar em meritocracia. Afinal, as empresas são feitas de pessoas, que por sua vez, têm preconceitos inconscientes. [12]

Ou o que uma outra amiga, consultora experiente em RH, chama de “queridomêtro”, e que quem como eu, tem contato nos treinamentos nas empresas (eu em treinamentos de normas trabalhista, assédio, para lideranças inclusive, chão de fábrica) sabemos que não há exagero nessas constatações. 

Muito bem. O que fazer com tudo isso?

E por que você precisa olhar urgente para tudo isso?

Para sermos práticas, vamos voltar à Portaria e ao Decreto, uma vez que agora, eles têm uma lição de casa obrigatória e com prazo de implementação, se houver inconsistências salariais inexplicáveis e condições desiguais para mulheres. (E pelo pouco material mundial acima, o cenário não é promissor…) 

As questões que as empresas responderam para formar o relatório envolveram:

  1. a) existência ou inexistência de quadro de carreira e plano de cargos e salários;
  2. b) critérios remuneratórios para acesso e progressão ou ascensão dos empregados;
  3. c) existência de incentivo à contratação de mulheres;
  4. d) identificação de critérios adotados pelo empregador para promoção a cargos de chefia, de gerência e de direção; e
  5. e) existência de iniciativas ou de programas, do empregador, que apoiem o compartilhamento de obrigações familiares.

As informações salariais saíram do eSocial, e são as que você sempre colocou lá (ops, olhou o CBO quando sugeri em 2023?).

Percebe a estratégias das perguntas? 

Após o relatório ser enviado às empresas, elas vão poder analisá-lo para o publicar. Se há problemas graves de distorção de dados em vista da forma como eles foram colhidos, e há justificativa deles, você pode verificar com seu jurídico se há alguma medida judicial a ser tomada, para não publicação e para reanálise com eventuais dados corrigidos. 

Lembrando que, quando a empresa for publicar o relatório, poderá apresentar informações que entenda pertinentes para mostrar as diferenças que aparecerem.

Se forem constadas divergências no relatório, (publicado ou não) inclusive, ausência de políticas de fomento ao desenvolvimento da mulher, um plano de ação, que poderá envolver os sindicatos,  deverá ser elaborado.

E aqui repito o que coloquei na coluna anterior: o “Plano de Ação para Mitigação da Desigualdade Salarial e de Critérios Remuneratórios entre Mulheres e Homens” deverá conter: 

I – as medidas a serem adotadas, as metas e os prazos; e

II – a criação de programas relacionados à:

  1. a) capacitação de gestores, lideranças e empregados a respeito do tema da equidade entre mulheres e homens no mercado de trabalho;
  2. b) promoção da diversidade e inclusão no ambiente de trabalho; e
  3. c) capacitação e formação de mulheres para o ingresso, a permanência e a ascensão no mercado de trabalho em igualdade de condições com os homens.

O Programa de mitigação deverá conter ainda a previsão de:

I – capacitação de gestores, lideranças e empregados a respeito do tema da equidade entre mulheres e homens no mercado de trabalho;

II – promoção de diversidade e inclusão no ambiente de trabalho; e

III – capacitação e formação de mulheres para o ingresso, permanência e ascensão no mercado de trabalho em igualdade de condições com os homens.

Então, é isso: o Dia Internacional da Mulher neste ano não traz só flores (ainda bem), mas missões de análise, mapeamento de riscos, e estudo para soluções. 

Lembrando que publicar o relatório é o menor os problemas. Ele só mexe com a imagem da empresa, e essa é a maior preocupação de quem quer evitar a publicação, porque a igualdade salarial está prevista na lei desde sempre (art. 5º da CLT, art. 461 com a redação anterior, a lei 9029/95 e, agora, o art 461 com a nova redação com multas beeem altas), e atinge qualquer empresa com qualquer número de empregados. 

Então com ou sem relatório sua lição de casa, se você não começou, pelo menos em 2023, já está atrasada! 

Vamos começar? Ou Vamos esperar  alguém bater na porta?

Se quiser começar, eu sugiro um passo a passo simples e que é só inicial, até porque o trabalho é profundo e vai demandar detalhamento após essa primeira verificação:

  1. Mapear diferenças salariais e ver se há as “inexplicáveis” – atenção à meritocracia com viés! 
  2. Mapear sua estrutura de cargos, salários, critérios de remuneração variável, bônus, promoções .
  3. Verificar as atividades reais nos departamentos e setores – quem faz o que? 
  4. Mapear se você tem  políticas para igualdade de gênero
  5. Mapear se você tem políticas para fomentar o desenvolvimento da mulher, inclusive com regras para homem como os benefícios envolvendo parentalidade e não só maternidade, há incentivo a estudos, inserção em funções técnicas,  desenvolvimento de carreira…?
  6.  Estudar os vieses existentes na empresa – você deve precisar de ajuda externa especializada. 
  7. Verificar denúncias de assédio moral e sexual – você tem canal de denúncia confiável ou via para algum “chefão” local? Atenção, e verifique se as denúncias acabam sendo externas ao Ministério Público do Trabalho, pois esse é um indício de que , se você tem canal de denúncia interno, há algo de errado com ele. 

A lista não acaba aí, conheça sua realidade, abra sua mente e estude seus vieses antes de começar a olhar para ela. 

E só mais uma dica, sabe porque políticas de igualdade de condições de trabalho além da vida intra muros nas empresas são importantes?

Igualdade Salarial - IMG II

Porque divisão de tarefas sociais importa, e elas decorrem de pautas parentais.

Quem sabe no próximo dia 08 de março tenhamos um pouquinho mais de comemorações que reflexões? 

Maria Lucia Benhame, advogada e sócia do escritório Benhame Sociedade de Advogados, especialista em gestão trabalhista. É uma das colunistas do RH Pra Você. O conteúdo dessa coluna representa a opinião do colunista. Foto: Divulgação.

[1] https://panoramafarmaceutico.com.br/farmacia-contra-lei-igualdade-salarial/
[2] https://eproc1g.trf6.jus.br/eproc/controlador.php?acao=acessar_documento_publico&doc=381709927198219493409362228429&evento=381709927198219493409362241283&key=6e281b2097d683bce0726b66a5aa04803d3f82c25dda07502cc6f0f1ada904e6&hash=a48edcbfce8983b3be5899645554bf87
[3] https://www.abrasca.org.br/noticias/sia-cia-1662-mulheres-e-pessoas-negras-seguem-distantes
[4] Vieses inconscientes, equidade de gênero e o mundo corporativo – lições da oficina “vieses inconscientes”. https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/Vieses_inconscientes_16_digital.pdf
[5] Kerr, Cris – Viés Inconsciente São Paulo, Literare Books International, 2021 pg 13 
[6]  https://www.un.org/en/observances/equal-pay-day
[7] Trecho original: “Across all regions, women are paid less than men, with the gender pay gap estimated at around 20 per cent globally. Gender equality and the empowerment of women and girls continue to be held back owing to the persistence of historical and structural unequal power relations between women and men, poverty and inequalities and disadvantages in access to resources and opportunities that limit women’s and girls’ capabilities. Progress on narrowing that gap has been slow. While equal pay for men and women has been widely endorsed, applying it in practice has been difficult.
[8] https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/policies/justice-and-fundamental-rights/gender-equality/equal-pay/equal-pay-day_en#:~:text=15%20November%202023%20marks%20the,a%20national%20Equal%20Pay%20Day.
[9] https://www.equalpayinternationalcoalition.org/
[10] https://www.oecd.org/stories/gender/social-norms-and-gender-discrimination/
[11] https://www.oecd.org/stories/gender/social-norms-and-gender-discrimination/sigi/
[12] Kerr, Cris, op. Ct. Pg 129
[13] https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/policies/justice-and-fundamental-rights/gender-equality/equal-pay/equal-pay-day_en#:~:text=15%20November%202023%20marks%20the,a%20national%20Equal%20Pay%20Day.