O teletrabalho é uma realidade, mas para poucos. Mais ainda, é uma realidade prazerosa para um grupo seleto.
Em uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre)[1], divulgada no Jornal Valor Econômico e reproduzida no site do SINDEPRESTEM – Sindicato das Empresas de Prestação de Serviços a Terceiros, Colocação e Administração de Mão-de-obra e de Trabalho Temporário no Estado de São Paulo -, encontramos a informação de que apenas 1/4 dos trabalhadores, de maneira geral, exercem funções passiveis de se desenvolver remotamente. Só 17.8% teriam condições de desenvolver o trabalho remoto com condições mínimas de infraestrutura.
Mas o mercado de teletrabalho, para esses raros privilegiados que somam possibilidade de função mais possibilidade de infraestrutura e local apropriado, vai ganhar o mundo e as carreiras vão se internacionalizar, especialmente em funções como de tecnologia de informação.
Na reportagem, o pesquisador Fernando Barbosa de Holanda Filho[2] diz que “o mercado em algumas carreiras vai virar global. No caso brasileiro, a legislação trabalhista pode ser um problema para atrair talentos, em como o trabalho remoto vai ser tratado”. O pesquisar reconhece que a redução da insegurança jurídica é essencial para a melhora da atuação.
Então, as empresas vão competir com empresas estrangeiras pela mão de obra qualificada. E nesse momento surge a questão do “nômade digital”, que nada mais é do que alguém que exerce a sua função de maneira remota e quer trabalhar de outros locais.
Qual a situação legal dessas pessoas atuando em outro país na condição de estrangeiras?
Alguns países já se aditaram e criaram legislação sore esse tipo de trabalho. O site OBERLO[3] lista 21 nações que, em 2021, ofereciam vistos especiais para nômades digitais, e o que há de comum em todos é o fato de que o trabalhador está naquele país, porém deve provar que não trabalha nele, mas para uma nação estrangeira.
O Brasil também lançou resolução sobre esse tipo de visto, com a mesma exigência. É a Resolução 45/2021[4], que define o nômade digital como: considera-se “nômade digital” o “imigrante que, de forma remota e com a utilização de tecnologias da informação e de comunicação, seja capaz de executar no Brasil suas atividades laborais para empregador estrangeiro”.
A Resolução exclui dessa figura “…o imigrante que exerça atividade laboral, com ou sem vínculo empregatício, para empregador no Brasil ou cuja autorização de residência para exercício de atividade laboral no País esteja regulamentada em outro normativo deste Conselho”.
Assim, um estrangeiro que venha ao Brasil e trabalhe para empresa brasileira não será nômade digital, mas um expatriado, e deve ter visto de trabalho mesmo que atue remotamente.
Como, então, tratar duas situações que cada vez ficam mais reais?
- O empregado brasileiro, residente no Brasil, que atua para empresa brasileira e decide, por si, sem interesse da empresa envolvido nessa decisão ir morar fora do Brasil.
- A empresa brasileira que, com falta de mão de obra especializada, ou por qualquer outro motivo, quer contratar estrangeiro residente do exterior como empregado.
Aviso de spoiler: Nenhuma dessas hipóteses está regulada no Brasil. E todas envolvem questões fiscais, previdenciárias, de regularidade do trabalho, de benefícios, de isonomia… e por aí seguimos, sem uma solução prevista em lei.
A primeira hipótese é a mais comum em vários ramos de empresas. Muitas se depararam com empregados morando fora do país sem nem mesmo terem sido avisadas, quando começaram a pensar em trabalho híbrido, ou ainda em outras situações como reuniões, problemas com equipamentos e outros.
Há, ainda, os que hoje só avisam as empresas que estão indo embora e se indignam quando os problemas mais variados lhe são mostrados indicando que a empresa não aceitará essa situação. Nesse momento, o empregado, muitas vezes, entende que deve ser demitido e indenizado, sem perceber que ele estaria faltando com o dever da subordinação ao tomar atitude sem autorização.
É claro que, na maior parte das vezes, isso não é má-fé, mas é um descompasso entre a visão do anywhere work e as legislações nacionais, especialmente as trabalhistas e fiscais.
No Brasil, a expatriação de um trabalhador já sofre com uma lei descompensada da realidade, criada para uma situação específica de trabalho nos anos 1980 e trazida para todos os trabalhadores sem nenhuma adaptação. É a lei 7064/82[5], aplicada para empregado contratado ou transferido para atuar no exterior. (art 1º)
Portanto, não só a transferência do “expatriado” atrai essa lei, mas a contratação de trabalhador brasileiro para atuar no exterior diretamente por empresa estrangeira também (o assunto é polêmico e merece outro artigo).
Mas o “nômade digital” não é expatriado, e as empresas tomam muito cuidado para que essa situação não se configure como tal, afastando qualquer interesse seu dessa mudança para um “anywhere” no exterior.
Então, a primeira situação do contrato do nômade digital é que o local em que o empregado estiver, qualquer que seja ele, deve ser visto como o estabelecimento da empresa. Faz-se isso pegando emprestada a definição do artigo 6º da CLT que não faz diferenças “entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância”, considerado, portanto, que é como se o empregado estivesse no estabelecimento da empregadora, apenas de estar distante dele.
E então podemos dizer que “ok, não há problemas maiores, aplico todas as regras como se o empregado estivesse em minha sede”.
Se isso pode ser verdade, com poucos riscos para o empregado situado no Brasil, o que dizer do que se fixou no exterior?
E será que essa pessoa sabe que pode estar numa situação de ilegalidade naquele país, pois não tem uma autorização de trabalho naquele território? Ou se tem, envolve atuar para empresa estrangeira?
Além desse aspecto de legalidade do trabalho em si, há várias situações que estão sem solução legal:
- Situação fiscal – muitas pessoas deixam o Brasil para uma experiência nômade e não sabem que passados 12 meses fora do Brasil, elas deixam de ter residência fiscal aqui, e isso muda toda incidência de impostos em seus ganhos neste território;
- Há riscos de ter que pagar impostos no Brasil e no exterior, desde o primeiro mês;
- A previdência social não dá cobertura para o brasileiro no exterior. Como fazer com afastamento previdenciário, e um acidente? Será acidente do trabalho se ocorrer durante o trabalho?
- E os exames periódicos e eventual demissional?
- E a análise de riscos? E a responsabilidade da empresa contida na CLT sobre “instruir os empregados, de maneira expressa e ostensiva, quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho”?
- Qual o horário e trabalho? Que fuso considerar? É noturno o trabalho à noite no exterior ou no Brasil? E como atender as demandas daqui com um fuso muito diferente?
- No plano médico, se a empresa o tira, quando o empregado voltar ao Brasil e se reinserir no plano terá que cumprir carências;
- A retirada do plano não pode configurar perda de isonomia? A substituição por ajuda de custo ou plano com cobertura no exterior não gera discriminação? Ou pior, caracteriza expatriação?
- E os benefícios de alimentação – VA, VR, cesta básica? O que fazer com eles?
- E os instrumentos de trabalho, como notebook e outros: eles podem ser levados ao exterior? E as questões de:
- Assistência técnica
- Sigilo e confidencialidade
- LGPD, GDPR e outras…
- Legalidade de se levar o equipamento, se por exemplo, ele for alugado
- O seguro cobre o equipamento fora do País, se não for em curta viagem a trabalho?
- Que rede será acessada? Ela é segura?
- Se a empresa usa rede segura, como VOIP como fazer esse uso no exterior?
Enfim, ter um empregado atuando no exterior por vontade própria é algo que traz inúmeras questões e riscos para ambas as partes – empresas e empregados – e não tem ainda uma solução fácil.
Muito disso poderia ser resolvido via instrumento coletivo – como calendário, condições dos benefícios e sua eventual suspensão e outros. Mas as questões fiscais e previdenciárias dependem de lei não só brasileira, mas no país de chegada. Se o destino tiver visto de nômade digital, metade do problema está resolvido, mas e se não tiver?
No dia 14 de março, estive num excelente evento da Câmara de Comércio França Brasil, com os advogados Arnaud Colson (GV Paris Avocats) e Peggy Robert (French Cornut-Gentille Avocats), mediados pela advogada Marina Mendes Costa Sócia, da GV Paris Avocats – Advogada no Brasil e na França -, que abordaram os temas tributários e sociais. A França não possui regulamentação do nômade digital, portanto, o empregado pode ser, eventualmente, considerado um empregado destacado, ou como chamamos, expatriado, trazendo inúmeros riscos para ambos, empresa e empregado, inclusive fiscais e previdenciários.
Mas, poderia até atrair a lei trabalhista francesa.
Portanto, hoje, o “encrenca” do título não é uma figura de linguagem é uma possibilidade real. As situações devem ser analisadas com base não só na lei brasileira, mas nas leis da localidade em que o empregado for.
E a segunda hipótese? O que fazer nessa situação?
A pesquisa envolve a legislação do país de residência do candidato, mas também tem um limbo no Brasil. A contratação desse empregado exige cumprimento da lei brasileira? Ou estrangeira? A empresa é empregadora no Brasil, no país de residência do estrangeiro ou em ambos?
Hoje, nada dessa situação é regida por lei no Brasil.
Nesse caso, as empresas têm optado por contratar prestadores de serviços, com contratos internacionais, sem configurar uma relação de emprego. No entanto, os elementos da relação de emprego sob lei brasileira e estrangeira devem ser evitados.
Em ambas as situações temos a lei correndo atrás da realidade e, até agora, perdendo.
O que toda essa situação de insegurança nos mostra é que a realidade corre e a lei engatinha. Parte poderia ser resolvida em negociação sindical, mas não localizei nenhum acordo tratando desse tipo de situação. Até que uma definição ocorra as empresas deverão assumir mais ou menos riscos dependendo de seu apetite por eles.
Maria Lucia Benhame, advogada e sócia do escritório Benhame Sociedade de Advogados, especialista em gestão trabalhista. É uma das colunistas do RH Pra Você. O conteúdo dessa coluna representa a opinião do colunista. Foto: Divulgação.
[1] https://sindeprestem.com.br/nem-20-tem-infraestrutura-para-home-office/ – recuperado 13/03/22
[2] pesquisador do FGV Ibre e um dos autores do estudo
[3] https://www.oberlo.com.br/blog/vistos-nomades-digitais – recuperado 13/03/22
[4] https://in.gov.br/web/dou/-/resolucao-cnig-mjsp-n-45-de-9-de-setembro-de-2021-375554693#:~:text=Disp%C3%B5e%20sobre%20a%20concess%C3%A3o%20de,%2C%20denominado%20%22n%C3%B4made%20digital%22. – recuperado 13/03/22
[5] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7064.htm – recuperada em 13/03/22