O artigo não será jurídico, mas algumas leis aparecerão.

Para quê?

Para mostrar que diferença salarial não é assunto só de lei… (ops, spoiler)

Então vamos à primeira pergunta: A determinação legal de igualdade salarial sem distinção de gênero, raça e etnia é coisa nova? Veremos:

Um pouco da situação anterior

A proteção contra salário discriminatório por razão de sexo já existia na lei desde a edição da CLT, .

O artigo 5º da CLT vigente desde 1943 estabelece:

Art. 5º – A todo trabalho de igual valor corresponderá salário igual, sem distinção de sexo.

E o artigo 461, que tinha essa redação original:

Art. 461. Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, na mesma localidade,  corresponderá, igual salário, sem distinção de sexo.

Em 1952, o artigo 461 da CLT passou a ter a seguinte redação em seu caput:

“Art. 461. Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor prestado ao mesmo empregador, na mesma localidade, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, nacionalidade ou idade.

Então:

  • em 1943 tínhamos a proteção de diferenciação salarial em razão de sexo.
  • em 1952 foi acrescida a proteção textual a nacionalidade ou idade (ops, etarismo vedado desde então…).

De qualquer maneira, qualquer trabalhador tinha direito ao mesmo salário desde que exercesse a mesma função com a mesma perfeição técnica e produtividade.

Na década de 1990 surge a lei 9.029/95 que veda a discriminação na contratação e na manutenção do contrato (demissão), e que pode ser usada analogicamente durante o contrato.

Portanto:

  • em 1943 tínhamos a proteção de diferenciação salarial em razão de sexo.
  • em 1952 foi acrescida a proteção textual a nacionalidade ou idade (ops, etarismo vedado desde então…).
  • em 1995 foi vedada qualquer discriminação, criminalizando inclusive atitudes em relação a várias atitudes que indicassem preconceito contra mulher gestante ou que quisesse engravidar, ou que estivesse em idade fértil (art. 2 º).

O que temos de novo no front?

A lei 14.611/23, que traz regras para “Art. 1º: Esta Lei dispõe sobre a igualdade salarial e de critérios remuneratórios, nos termos da regulamentação, entre mulheres e homens para a realização de trabalho de igual valor ou no exercício da mesma função”. [1]

Apesar de tratar de proteção contra a diferença salarial entre homem e mulher (não de gênero) acrescenta o § 6º ao art. 461 da CLT, tratando de indenização “por motivo de sexo, raça, etnia, origem ou idade”.

Mas a lei só traz instrumento de aferição de diferenças salariais entre homens e mulheres (art 4º), com critérios de transparência e fomento de desenvolvimento da mulher no mercado de trabalho (que já existe na lei 14.457/22, que tratou do combate a assédio sexual e outros assuntos relacionados ao trabalho da mulher). [2]

Portanto, em questões e fundo, ou seja, de “mérito”, de proteção, não há nenhuma alteração no que já existia hoje.

Mantem-se também a interminável discussão do que é trabalho de “igual valor”, já que se trata de um conceito subjetivo, salvo nas funções mais operacionais e realmente idênticas, que se pode medir produtividade e perfeição técnica, por exemplo, com número de peças efetuadas.

O que há são ferramentas e mecanismos de controle, que devem ser implementadas, e que talvez gerem mais transparência.

A lei revê formas desse controle com (art. 4º):

I – estabelecimento de mecanismos de transparência salarial e de critérios remuneratórios;

II – incremento da fiscalização contra a discriminação salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens;

III – disponibilização de canais específicos para denúncias de discriminação salarial;

IV – promoção e implementação de programas de diversidade e inclusão no ambiente de trabalho que abranjam a capacitação de gestores, de lideranças e de empregados a respeito do tema da equidade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, com aferição de resultados; e

V – fomento à capacitação e à formação de mulheres para o ingresso, a permanência e a ascensão no mercado de trabalho em igualdade de condições com os homens.  

As empresas com mais de 100 empregados deverão disponibilizar os dados salariais em uma “publicação semestral de relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios”, que devem respeitar as diretrizes da LGPD, já que requererá dados “anonimizados” e informações que permitam a comparação objetiva entre salários, remunerações e a proporção de ocupação de cargos de direção, gerência e chefia preenchidos por mulheres e homens.”

Mais uma questão aqui: Como anonimizar dados se a empresa tem um ou dois diretores e poucos gerentes? Sabe-se quem é quem e de quem é o salário pela simples informação do sexo ou do cargo. Como gerir essa situação x LGPD?

Outra novidade é que há a obrigação da empresa em apresentar plano de ação se qualquer diferença for detectada, com participação sindical e de representantes de empregados do local de trabalho, que deverão ser os de direção, gerência e chefia, porque os demais cargos não estão abrangidos pela comunicação instituída pela lei.

Tudo isso, sem prejuízo de uma multa de 3% do faturamento da empresa, limitada a 100 salários-mínimos.

Como as empresas farão tal comunicação não se sabe ainda, porque cabe ao governo disponibilizar tal ferramenta de inserção de dados, com respeito a LGPD.

No fundo, vai mudar alguma coisa?

De verdade, instrumento legal já existia. O que impede então o fim de tal diferenciação? A lição de casa não é da lei, mas das próprias empresas e de outros setores da sociedade, inclusive judiciário, agindo com viés inconsciente de preconceito.

Há mais a ser discutido e feito, do que só “divulgar salários”?

Será que nas empresas, setores de ESG e diversidade poderiam ter agido de maneira mais “firme” real e prática nesse assunto?

Será que quando o STF[3] ratifica que a mulher não pode trabalhar igual ao homem, porque tem dupla jornada traz um desserviço e justifica o “breque” na carreira feminina?

Igualdade é igualdade, a CF de 1988 trouxe isso, com julgado como esse tudo só piora. Reviver o capítulo de “proteção ao trabalho da mulher” da década de 1940, como se a mulher não fosse capaz de se defender e fazer suas escolhas, é lamentável, prejudicial e fomenta o preconceito.

Será que a ausência total dessa pauta nas convenções coletivas de trabalho mostra um viés inconsciente também das entidades sindicais?

Aliás, as entidades sindicais são diversas?

Qual a questão e fundo nesse assunto?

A diferenciação salarial entre homens e mulheres é mundial. Conforme dados da ONU, em todo o mundo, na média, as mulheres recebem 20% a menos do que os homens.[4]

Não há justificativa de formação que justifique essa diferença. A mulher tem boa formação, mais às vezes que os homens em alguns setores. São vistas como mais responsáveis. Mulheres na liderança geram melhor desempenho da empresa, conforme pesquisa da OIT.[5]

A causa da desigualdade é do preconceito, de leis que “protegem” a mulher, mas no fundo protegem postos de trabalho masculinos, julgados que “protegem “a mulher, mas são preconceitos disfarçados.

Ou seja, não adianta dar mais proteção à mulher, é preciso que os homens tenham os mesmos direitos e deveres, inclusive de tirar uma licença parental longa junto com a mãe, ou de ambos na adoção, seja em casais hetero ou homoafetivos, por exemplo.

E não só aqui, como essa reportagem de Portugal mostra[6]. Há muito o que pode ser feito para efetivar a igualdade de oportunidade, mas se houver preconceito, nada dará certo. O que é curioso no Brasil é que o homem, para tirar licença paternidade estendida, tem que fazer curso! Ou seja, não é visto como natural que um homem cuide da família e dos filhos.

Então, as empresas podem criar programas de valorização de mulheres, e de igualdade de gênero, e fomentar que o homem use os seus direitos sem preconceito.

Assim, na lei, para empresas acima de 100 empregados:

  • Comecem a mapear as funções x sexo x salário;
  • Mapear porque há diferenciação salarial e de forma de remuneração (ex bônus diferentes?) – os critérios devem ser objetivos sem nenhuma relação com a condição de raça, sexo idade etc.;
  • Mapear e revisar políticas;
  • Verificar necessidade de alteração salarial e envolvimento ou não de entidade sindical;
  • Preparar as informações;
  • Esperar o governo divulgar como serão efetuadas as comunicações.

Há muito o que fazer, de verdade,  mesmo que você seja uma empresa com menos de 100 empregados para reduzir diferenciações salariais movidas por preconceito, como, por exemplo:

  • Ter ESG e diversidade que sejam de verdade é o primeiro passo;
  • Realmente acreditar na igualdade. Esquecer o discurso e ir para a prática;
  • Pesquisar talentos internos, abrir oportunidades, criar programas de mentoria, são algumas medidas. Inclusive com medidas diversas de licenças parentais e não só para mulheres, ter um programa efetivo de apoio parental não facultativo. O facultativo, usualmente, tem baixa aderência, pela questão cultural e preconceituosa. 

Então, resumindo tudo

Há mais uma lei no radar, com mais dúvidas sobre sua eficácia que certezas.

O comunicado que ela vai exigir vai alterar algo?

Isso vai mudar a sociedade?

Bastará só uma comunicação?

Tribunais decidirão diferente, ou continuarão dando desculpas de não promoção da mulher porque ela não pode trabalhar na mesma escala que homens?

Para mim, a única a questão importante, é: O que você faz, de verdade, para não haver preconceito na sua empresa?

E mais o que você faz na empresa, leva para toda sociedade? Ou é só mais uma política corporativa?

[1] O artigo 1º de uma lei sempre traz seu assunto.
[2] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Lei/L14457.htm
[3] https://www.tst.jus.br/-/ministra-do-stf-mant%C3%A9m-decis%C3%A3o-do-tst-sobre-folga-quinzenal-de-empregadas-aos-domingos
[4] https://news.un.org/pt/story/2022/09/1801331
[5] https://news.un.org/pt/story/2019/05/1673361
[6] https://www.wort.lu/pt/sociedade/ainda-h-press-o-sobre-homens-que-tiram-licenca-parental-5c667b2eda2cc1784e33ddc8

Maria Lucia Benhame, advogada e sócia do escritório Benhame Sociedade de Advogados, especialista em gestão trabalhista. É uma das colunistas do RH Pra Você. O conteúdo dessa coluna representa a opinião do colunista. Foto: Divulgação.