Lá pelo final de 2018, quando o varejo estava em sua tradicional jornada de contratações temporárias para atender toda a demanda das datas festivas, Ellen, 28, foi chamada para fazer do time de uma tradicional loja de roupas no centro de São Paulo. Já experiente em vendas, área na qual atuava desde os 21 anos, a jovem profissional se viu diante de um desafio ainda não enfrentado em sua carreira: trabalhar com depressão.

Por ser próxima de sua chefe, com quem já havia trabalhado em outra oportunidade, Ellen expôs a situação a ela. Embora a doença não estivesse afetando o seu rendimento – pelo contrário, uma vez que as primeiras semanas foram de metas batidas -, a vendedora optou por falar a respeito pois já havia ouvido de algumas colegas que “atendia bem os clientes, mas não tinha paciência para conversar com mais ninguém”.

“Eu já sabia do meu diagnóstico, mas ainda não estava me tratando. Não tinha dinheiro para fazer uma terapia, então tinha medo do quanto a depressão poderia evoluir. Falei com a minha líder não para me justificar de algo, mas para deixar claro que havia um problema e que, em algum momento, ele poderia se manifestar de forma mais séria. Pela confiança que tinha nela, não tive medo de ser demitida. Como as outras meninas notavam a minha tristeza, senti que era melhor abrir o jogo. Só não imaginei que aquilo me colocaria em uma situação insuportável”, relata.

Segundo Ellen, acreditando que estava “protegendo uma boa funcionária”, a chefe expôs o desabafo a outras vendedoras. Provavelmente por não saber como lidar com uma pessoa com depressão, mas sentindo que precisava agir, quis criar uma “corrente de positividade”. Só que toda a positividade que viria a seguir passou um pouco dos limites.

“Havia momentos do dia em que, de repente, as meninas se sentiam ‘tocadas’ a falar comigo. Hoje eu vejo que as intenções eram as melhores, afinal, no varejo, na pressão por bater metas, há uma competitividade envolvida dependendo de como o negócio é gerido, o que cria uma clima mais de rivalidade do que de parceria. Fato é que cansei de ouvir que deveria enxergar a vida com outros olhos, que deveria agradecer por ter um emprego e saúde, que tudo ia passar, mas isso dependeria da minha postura, que fases ruins só chegam quando deixamos com que sentimentos ruins venham, entre outras frases”, diz.

Se sentindo culpada pela depressão e por não conseguir trazer para dentro de si aquela onda de otimismo, Ellen pediu demissão. “Sucumbi. Senti a pressão. Entenda, eu não tinha a cabeça que tenho hoje, mal sabia o que era a depressão. Tinha o medo dela aumentar, mas achava, ao mesmo tempo, que cedo ou tarde ela desapareceria, assim do nada. Comecei a entrar na onda de que eu só estava triste por ‘opção’. Era verdade o que as outras vendedoras falavam. Eu tinha saúde, um relacionamento estável, batia metas, então por que ficava triste? Me convenci que minha tristeza mesclada com estresse contaminaria o restante da equipe. A culpa foi tão grande que me demiti”.

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O problema da positividade em excesso

Apesar de todos os benefícios que nos podem ser trazidos pelo otimismo, no pensamento positivo que libera neurotransmissores que causam euforia, recompensa e satisfação, é preciso estar atento ao fato de que, muitas vezes, a positividade em excesso – quando ela começa a ganhar contornos tóxicos – ignora emoções ruins e pode trazer muitas consequências semânticas, negativas. Em casos como o da vendedora, diagnosticada com depressão, o efeito pode se agravar.

Marcelo Alves dos Santos, psicólogo clínico e docente de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, explica em artigo que, em meio a todas as exigências de caráter urgente impostas pelo universo corporativo às pessoas, há também a pressão para que elas se sintam felizes a todo instante e transmitam tal felicidade para seus arredores. O especialista manifesta que a felicidade acaba sendo enxergada com olhar mais racional do que emocional, uma espécie de empreendimento coletivo que estimula que o otimismo excessivo e por vezes tóxico prevaleça em algumas situações.

“A sociedade contemporânea configura-se a partir de movimentos de extrema racionalidade em relação ao mundo do trabalho. Isso conduziu a contradições da vida moderna, pois se espera que o trabalhador dê conta de todas as expectativas exigidas, como por exemplo, as diversas soft skills, capacitações técnicas e dedicação ao trabalho, sem a possibilidade de adoecimento, tornando-o um programado portador de habilidades e competências, numa perspectiva individualista”, destaca.

Segundo o Prof. Dr. Fabiano de Abreu Agrela, mestre em psicologia e PhD em Neurociências, culpa, vergonha, falta de empatia, desenvolvimento e crescimento profissional prejudicados, incluindo consequências como aumento de ansiedade e seus reflexos na saúde mental, podem ser encarados como efeito espelhado do comportamento na escola e até mesmo no trabalho, já que emoções negativas nos levam a dimensões curativas sobre nossos comportamentos.

O que muitos gestores e líderes não se atentam é que a positividade pode carregar tais emoções. “Lembre que uma pessoa que está com olhar de extrema positividade acaba ignorando os riscos envolvidos”, pontua. O professor aponta ainda que precisamos aprender a lidar com experiências ruins e dolorosas, pois senti-las e tratá-las, resulta em experiência e melhores opções para melhores resultados.

Outro ponto trazido por Santos é a resistência das pessoas em demonstrar suas vulnerabilidades. Por mais que algumas correntes corporativas incentivem que os líderes tenham um papel mais humanizado, o que inclui mostrar o seu próprio lado humano, ainda há uma pressão social – muito estimulada pelas redes sociais – para que se busque uma perfeição utópica.

Temos nisso a expectativa de que a felicidade se estenda, seja plena e ininterrupta, com efeito estendido àquela existência, com árdua vigilância para que seja ignorado o doloroso, o desprazer, a tristeza, a falta, etc. Somos exigidos a buscar ser, cada vez mais, os melhores em tudo o que fazemos, a não mostrarmos nossas tristezas, a estarmos prontos a vender um sorriso e uma vida perfeita, afinal, é esperado que você dê 110% em tudo, uma verdadeira perfeição, programado como uma máquina. Tudo isso para quê? Para que venhamos a corresponder alinhados com os diversos mecanismos de controle, que prestam vigilância constante”, escreve.

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Deixando de lado a positividade que faz mal

Segundo Maicon Paiva, espiritualista da casa de apoio espiritual, Espaço Recomeçar, para não cair na toxicidade, é preciso entender as emoções e trabalhar com elas, não tentar transformá-las em felicidade. O foco deve ser em partes boas da vida, mas não existe alguém inteiramente feliz (e nem inteiramente triste).

Com a frase “evitar o sofrimento é uma forma de sofrimento”, trazida pelo autor Mark Manson, que escreveu o livro “A sutil arte de ligar o f*da-se”, Paiva ressalta que “a repressão de sentimento não fica no nosso interior para sempre. A emoção é expressa de alguma forma, inclusive com doenças do corpo físico”.

Para a psiquiatra Andréia Souza, abolir algumas frases do dia a dia é o primeiro passo para frear os exageros na tentativa de demonstrar otimismo. “Podemos citar alguns argumentos a não serem usados, como ‘veja pelo lado bom’, ‘vai dar tudo certo’ após ouvirmos um desabafo, ‘seja grato e reclame menos’, entre outras. É igualmente válido parar de romantizar situações difíceis e que impactam negativamente a vida de alguém, tratando-as como algo que ‘será bom para fazer crescer’ ou para trazer mais resiliência”, orienta. “Algumas dessas frases parecem inocentes, mas podem ser um verdadeiro incômodo para quem está do outro lado”, acrescenta.

A especialista salienta que é fundamental que as pessoas identifiquem quando estão passando do ponto na tentativa de prestar apoio. “Evite fazer comparações, comentários indelicados, invalidar o sentimento alheio e, principalmente, achar que as coisas vão se resolver às outras pessoas da mesma forma que se resolvem a você. Cada um tem sua realidade, seus sentimentos, seus desafios diários. É muito importante trabalhar a comunicação, a empatia e entender que a compreensão e a conexão valem muito mais do que respostas vagas”, aconselha.

Por Bruno Piai