No dia 1º deste mês, uma nova lei entrou em vigor na Bélgica e promete impactar a rotina de mais de 65 mil servidores federais do país. De acordo com informações da BBC, os profissionais públicos não poderão mais ser contatados por empregadores fora do seu horário de trabalho. Além disso, passou a ser garantido pela legislação do país que nenhuma punição poderá ser aplicada àqueles que não responderem e-mails, mensagens ou ligações fora de seu expediente.
Petra de Sutter, ministra da Administração Pública belga, afirmou que a expectativa é para que as mudanças tenham impacto positivo no rendimento e, principalmente, na saúde dos funcionários. Para ela, a pandemia fez com que vida pessoal e vida profissional se aproximassem de tal forma que mal apresentam distinção entre si, o que só reforça a necessidade de ações para que os profissionais locais possam retomar o equilíbrio.
Segundo Petra, a impossibilidade de se desconectar do trabalho teria como resultado “estresse e burnout” aos colaboradores. No entanto, ainda de acordo com a BBC, a regulamentação ainda não deve chegar ao setor privado. Eric Laureys, porta-voz da Voka, afirma que a desconexão pode prejudicar uma das principais mudanças que a pandemia trouxe às relações de trabalho: a flexibilização. “Você basicamente está pondo em xeque a capacidade de organização das empresas”. A ministra rebate pontuando que é preciso “proteger direitos básicos dos trabalhadores”.
Se desconectar para não se sentir ‘desconectado’
Especialista em Gestão de Pessoas, Daniela Costa, idealizadora da Plataforma da Vida, explica que um dos principais catalisadores do Burnout é a exigência acima da média que algumas pessoas impõem para o seu trabalho. Ela chama a doença ocupacional de ‘síndrome do Super-Homem ou da Mulher Maravilha’. Na visão da mentora, a ironia em torno da desconexão é que quanto mais as pessoas são “sugadas” para o trabalho, menos elas conseguem se conectar plenamente com ele.
“Para evitar o desgaste extremo, é muito importante ter momentos de conexão consigo mesmo. O comprometimento com o corpo, mente e espírito deve ser diário e leva à desconexão dessa ‘matrix’ de trabalho e corporativa, que muitas vezes cria dissociação da realidade e da vida”, pontua.
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Uma pesquisa realizada pela consultoria McKinsey com 1.100 executivos e 2.656 colaboradores de 11 países revelou que, para a maioria, a saúde mental é um dos fatores de maior preocupação em tempos de pandemia. A pesquisa constatou que 62% dos entrevistados consideram esse o principal desafio do período.
Além disso, outras preocupações associadas à saúde mental também foram destacadas pelos respondentes como fator de preocupação na pandemia, entre as quais: sentimento de desconexão com o trabalho e colegas; falta de oportunidades de desenvolvimento; preocupação com as condições de saúde e segurança no trabalho presencial; e dificuldade de conciliar a criação de filhos pequenos com o trabalho remoto.
“Como se trata de um assunto tabu, costuma ser escondido, transformando-se em pandemia silenciosa”, explica a consultora organizacional Caroline Marcon, que acrescenta: “altos níveis de estresse e ansiedade podem ser percebidos quando há mudanças bruscas no comportamento, tais como: nervosismo excessivo e irritabilidade, agressividade ou passividade fora do padrão, fuga de contato social, cansaço e dores frequentes”.
Na opinião da gestora de pessoas Natasha Ferreira, a flexibilização do trabalho não pode ser um catalisador para que as organizações se sintam no direito de exigir que as pessoas estejam a todo instante a sua disposição. Ela diz que o home office não é um “prêmio” e sim um modelo de trabalho que ainda precisa ser testado fora da realidade pandêmica. Isso, portanto, não faz dele uma justificativa para que as pessoas precisem estar conectadas a todo momento.
“Questiono, honestamente, o porquê da crença de que a desconexão pode prejudicar a flexibilidade. O que, exatamente, incomoda gestores quanto a isso? Trabalhando de casa muitas pessoas estão ‘morando no trabalho’ e se sentem pressionadas a estarem disponíveis a seus gestores a todo o tempo porque eles criam a ideia de que o home office tem um preço a ser pago. Se eu contatar meu time depois do expediente, o que levo a eles é pressão, ansiedade, responsabilidades fora de seu horário de trabalho e não ‘flexibilidade’, afirma.
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A desconexão no Brasil
Em 2017, na França, entrou em vigor a Lei da Desconexão, que ampara legalmente empregados que não respondem seus empregadores após o término do expediente. No Brasil, por sua vez, não há jurisdição que determine que as empresas devam receber algum tipo de sanção por contatar o trabalhador fora do horário de trabalho, embora seja importante ressaltar que a Justiça do Trabalho pode intervir caso o direito à desconexão seja violado. Na prática, no entanto, estudos mostram o quanto o teletrabalho pode ter contribuído para que os profissionais tenham cada vez mais dificuldade para se desconectar.
Segundo uma pesquisa realizada pela Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP) em parceria com a Fundação Instituto de Administração (FIA), 45% dos entrevistados ultrapassam 45 horas semanais de trabalho. 23% trabalham entre 49 e 70 horas e 6% excedem as 70 horas – lembrando que a jornada legal de trabalho é de até 44 horas na semana.
O advogado especialista em Direito do Trabalho Empresarial, Fernando Kede (foto abaixo), sócio-fundador do escritório Schwartz e Kede Sociedade de Advogados, diz que a pesquisa reflete a falta de diretrizes claras na lei trabalhista e alerta para a necessidade de descanso. “Estabelecer o direito à desconexão para garantir o respeito ao período de descanso e à intimidade pessoal e familiar sem ter qualquer contato com o serviço, seja ele por meio de mensagens, e-mails ou ligações, é essencial para evitar prejuízos, à saúde mental dos funcionários, diminuindo o risco das empresas serem acionadas na Justiça”, elucida.
A regulamentação do teletrabalho ainda é ‘tímida’ no Brasil e quando chegou, em 2017, o contexto era muito diferente do atual. Na avaliação do especialista, a chegada da Covid-19 é motivo suficiente para que seja reconhecida a necessidade de uma lei mais abrangente para estabelecer limites ao empregador e garantir ao empregado o direito de se desligar do expediente de forma segura. “O empregador também precisa de diretrizes bem estabelecidas para saber o que pode ou não exigir de seus colaboradores para não ficarem expostos a riscos jurídicos”.
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Sobre o controle de carga horária, o Ministério Público do Trabalho (MPT) estabeleceu recentemente diretrizes, por meio de nota técnica, indicando que a empresa pode limitar o expediente, o que não era previsto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que versa sobre o teletrabalho. “Se ele optar por controlar o horário, deverá pagar sim hora extra quando o empregado exceder sua jornada, mesmo em casos de emergências. É essencial que faça, inclusive, o monitoramento para se certificar que o expediente está sendo cumprido. Hoje existem diversas ferramentas no mercado que possibilitam isso”, orienta.
Para o advogado trabalhista Fernando Oliveira, a lei brasileira referente à questão é “falha” e peca ao tentar proteger o colaborador. Na opinião do especialista, é urgente a necessidade de se estabelecer limites na relação a distância entre empresa e trabalhador, uma vez que “sendo o campeão mundial de processos trabalhistas, o Brasil pouco faz para criar mecanismos que, de fato, promovam desconexão, ainda mais diante de um cenário pandêmico que só fez crescer diversas enfermidades mentais”, finaliza.
Por Bruno Piai