Você já ouviu falar em bossware? O termo pode até não soar familiar, mas faz parte da realidade de muitos profissionais ao redor do mundo. A denominação se refere a ações utilizadas pelas companhias para monitorar a rotina de trabalho de colaboradores que atuam a distância. Mais especificamente, o conceito remete a softwares e aplicativos instalados nos equipamentos dos trabalhadores para que, assim, empregadores consigam acompanhá-los.

Na dinâmica do “Big Brother Corporativo”, o bossware se tornou uma ferramenta indispensável para muitos negócios não perderem a sua cultura de comando e controle, principalmente com o crescimento do home office e do modelo híbrido de trabalho. Um estudo da Digital.com revela, por exemplo, que 60% das empresas dos Estados Unidos e da Europa utilizam alguma ferramenta digital de monitoramento.

Bom para as empresas…

De acordo com levantamentos realizados nos Estados Unidos, a adoção dos sistemas de vigia se mostra vantajosa às organizações. Para 81% dos gestores, a implementação desse tipo de programa aumentou o rendimento geral das equipes. Não à toa, a demanda por um espião virtual em terras estadunidenses cresceu 78% em janeiro de 2022, quando comparada ao mesmo período de 2020.

Para Alline Antóquio, diretora executiva e especialista em Google da Gentrop, empresa de soluções tecnológicas, o eventual sucesso de um bossware demanda transparência e observância quanto aos tipos de ferramenta adotadas, que não devem ser necessariamente de vigilância, mas que busquem a transformação da cultura organizacional para um trabalho colaborativo e produtivo, de forma que não seja preciso um monitoramento individual.

“Realizar o gerenciamento de pessoas, de equipes inteiras, garantindo as taxas de produtividade e engajamento não é tarefa fácil se realizada de forma presencial, então, quando pensamos à distância, torna-se algo muito mais desafiador e traz insegurança às lideranças. Enfim, como seria possível ter a certeza que todos aderiram e se familiarizaram com os novos métodos? A jornada da transformação digital não é algo que acontece tão rapidamente e o fator humano é peça-chave a ser considerada neste caminho”, destaca.

Por mais que tal monitoramento esbarre, inevitavelmente, na privacidade dos trabalhadores, Alline salienta que o uso adequado de algumas soluções pode ser bastante benéfico e produtivo, à medida que os gestores tenham acesso aos dados de desempenho dos funcionários e utilizem essas informações para acompanhar o processo de transformação da companhia, oferecer suporte aos que ainda se sentem inseguros e promover a colaboratividade entre todos que fazem parte do dia a dia da organização. Um passo que vai muito além de apenas “vigiar” as ações dos colaboradores.

Veja mais: BBB da gestão e os softwares de monitoramento

…Mas nem tanto para os colaboradores

Empresas que optam pela utilização de um bossware costumam ter, ao menos no papel, justificativas que passam pela medição da produtividade – o que inclui a prevenção contra o quiet quitting – ou pelo combate a eventuais fraudes. Por trás das boas intenções, no entanto, não é incomum que algumas más práticas façam parte da dinâmica.

No ano passado, ganhou destaque na mídia o caso da americana Michae Jay. Ao descobrir que era vigiada pela câmera de seu notebook, sem conhecimento ou consentimento, ela foi demitida após tornar pública a situação – mas não sem antes ter sido repreendida após ser flagrada preparando um lanche durante o seu horário de trabalho.

De “bônus”, enquanto era funcionária, sempre que se levantava de seu assento ou pegava o celular, Michae perdia o acesso ao seu computador, uma vez que ele era bloqueado por alguns minutos. “Não está na mesa. Ação aplicada. Por favor, obtenha aprovação de seu superior para tentar novamente”, dizia a mensagem que surgia em sua tela.

Caso semelhante aconteceu no Rio de Janeiro, também em 2022. Uma trabalhadora de 24 anos foi advertida pela supervisora por ter ido ao banheiro “fora de hora”. Em seu relato, ela conta que não apenas foi obrigada a instalar um bossware em seu computador pessoal – que era utilizado para o trabalho -, como também foi imposto um sistema de “Bio Break”, ou seja, horários “biologicamente estipulados” para idas ao banheiro.

Encontrho Tendências 2023

Segundo relatório do Centro de Democracia e Tecnologia, dos Estados Unidos, o uso de aplicativos de monitoramento pode trazer malefícios que vão muito além do incômodo da quebra de privacidade. Além de desencorajar e até penalizar condutas benéficas à saúde dos funcionários, como pequenas pausas para diminuir a fadiga ou uma simples ida ao banheiro, o bossware pode impor ao trabalhador um ritmo de trabalho mais acelerado, o que eleva a pressão e a tensão para a execução de tarefas.

“Em suas casas, as pessoas se conectam aos computadores para trabalhar, e são continuamente monitoradas por programas que contam cliques e movimentos no mouse, tempo de tela, uso do teclado, número de e-mails enviados, tempo de duração das reuniões, linhas de código, e até tiram fotos aleatoriamente. Estes programas estão também potencialmente instalados nos celulares, e alguns utilizam dados de GPS para monitorar deslocamentos. O relógio de ponto deixou de ser passivo, e agora é um agente ativo que está te observando continuamente”, diz Marcos Thiele, sócio da Adigo Desenvolvimento.

Veja mais: 7 comportamentos que não condizem com a liderança moderna

É estratégico?

Se feito um julgamento em torno de dados como o citado no início do texto, da Digital.com, é difícil argumentar contra a implementação de um software bossware. Porém, para Agnaldo Silva, consultor de RH e especialista em Recrutamento & Seleção, é necessário que gestores, líderes e profissionais de Recursos Humanos façam uma análise além da produtividade.

“O bossware pode ser uma ferramenta positiva, mas o uso exige cuidado. Quando avaliamos só a produtividade, por exemplo, a análise é a curto, médio ou longo prazo? Talvez o impacto inicial do uso da ferramenta gere, de fato, algum resultado. Mas com o passar do tempo, se o monitoramento culminar em advertências, excesso de cobranças, assédio, problemas emocionais ou perda de total da privacidade – o que envolve a discussão de aspectos pessoais e não profissionais -, isso pode aumentar o turnover, o Burnout, tornar as pessoas menos felizes e engajadas, e também pesar contra a reputação da marca”, explica.

Feedback gera resultados1

Silva orienta que os gestores façam uma análise de sua cultura e de suas lideranças antes de decidir se devem ou não investir em um sistema de monitoramento. Além disso, ele recomenda que, em casos nos quais a necessidade existe, o ideal é aplicar o software em equipamentos da própria organização e não em celulares ou computadores de uso pessoal dos colaboradores, pois isso pode trazer um sentimento de vigilância que vai além do horário de trabalho.

“Empresas que trabalham a autonomia das pessoas não precisam de um bossware. Exceto, claro, se for muito preciso por questão de segurança, o que envolve, por exemplo, o manuseio de informações ou dados extremamente sensíveis por parte dos colaboradores. Quando os líderes precisam ter esse comando, no entanto, vale avaliar se essa é a melhor alternativa. Capacitar a liderança para liderar pessoas a distância é uma opção. Feedbacks podem funcionar melhor do que vigilância. O fato é que a transparência sempre deve existir. O funcionário deve ser informado não só da existência do software, como também sobre o porquê do uso e como ele funciona”, diz.

Veja mais: 12 sinais que indicam que você pode ter um Burnout

Controverso, mas permitido

Segundo o estudo “Working from Home Around the World“, o Brasil é o país onde os colaboradores mais desejam diminuir a quantidade de dias trabalhados presencialmente, sendo a vontade dos trabalhadores trabalhar em média dois a três dias de home office.

Diante desse cenário, por mais que não haja números sobre o bossware no Brasil, é uma tendência natural empresas investirem no modelo de monitoramento. Portanto, é importante se atentar aos pontos legislativos.

Do ponto de vista da legislação trabalhista para que seja monitorada a atividade dos trabalhadores, é necessário que seja detalhado no contrato de trabalho de qual forma será feito o monitoramento, deixando claro que não envolve a vigilância por áudio ou vídeo, o que fere o princípio constitucional da inviolabilidade, previsto na Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso X”, explica Bruna Kauer, advogada do escritório Aparecido Inácio e Pereira Advogados Associados.

No Brasil, as ferramentas podem utilizar diversos mecanismos para realizar este monitoramento,  acompanhando páginas acessadas pelos funcionários e programas executados pelos mesmos. Além disso, alguns softwares realizam checagens periódicas da localidade dos funcionários, por meio do computador corporativo.

Atualmente, o monitoramento de funcionários não é previsto por nenhum tipo de legislação, ou seja, não há nada que regulamente ou proíba esse tipo de prática. Assim, o indicado é buscar uma composição amigável entre empregados e empregadores”, complementa a advogada.

Outro ponto importante para o monitoramento de funcionários é possuir um bom planejamento, que esteja de acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados, com a preservação de informações confidenciais que envolvam os titulares de dados, além de manter comunicação com os funcionários, a fim de informá-los sobre essas políticas.

Já sobre demissões, caso o empregado esteja ciente do monitoramento e com o contrato de trabalho adequado, o mesmo pode ser demitido por ações que infrinjam o controle do empregador. Porém, se o funcionário for demitido por ações de monitoramento e não tiver consciência deste processo feito pela empresa, pode buscar seus direitos nos órgãos competentes.

“Na hipótese de demissão em razão de monitoramento ilegal, caberá eventual reclamação trabalhista, além de denúncia junto ao Ministério Público do Trabalho para apuração de conduta ilegal”, finaliza a especialista.

Por Bruno Piai