Por mais que os últimos anos tenham sido especialmente desafiadores à saúde mental da população global, com a pandemia da Covid-19 engatilhando o aumento de doenças e síndromes emocionais, como depressão, ansiedade e Burnout, o vírus passa longe de ser o único responsável pela alta incidência dos fenômenos.

O Relatório Anual de Forças de Trabalho da Aflac, fornecedora de produtos e seguros de saúde suplementares nos EUA, é um dos inúmeros estudos que deixam isso bem claro. O levantamento revela que 59% dos trabalhadores americanos enfrentam níveis ao menos moderados de esgotamento, porcentagem que supera 2021 (52%) e se iguala a 2020, anos marcados pelo auge do novo coronavírus.

No Brasil, os números de profissionais esgotados não são mais animadores. Pesquisa da Gattaz Health & Results, liderada pelo psiquiatra Wagner Gattaz do IPq USP (Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo), revelou que a incidência da condição, de 2015 a 2022, cresceu 18%, atingindo um a cada cinco trabalhadores. Outras apurações, como a da healthtech Pebmed, constatam que 30 milhões de brasileiros lidam com o Burnout.

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Empresas estão prontas para lidar com o Burnout?

Em janeiro de 2022, a Síndrome de Burnout, oficialmente, passou a ser classificada pela Organização Mundial da Saúde como um fenômeno ocupacional (CID-11, QD85). A mudança aumentou a responsabilidade dos empregadores em relação à condição, uma vez que o direcionamento técnico para o diagnóstico passou a existir.

“Antes, tudo era tratado como um quadro depressivo ou de estresse. Agora, com a inclusão de critérios específicos para o diagnóstico, realizar uma decisão clínica com um plano de tratamento assertivo fica muito mais direcionado”, destaca Karen Valeria da Silva, Coordenadora de Psicologia da Docway, empresa de soluções de saúde digital.

Na visão da especialista, não apenas a decisão da OMS, como também a dinâmica de trabalho marcada pela pandemia, incentivaram gestores, líderes e RHs a olhar com maior atenção para o problema. Embora um levantamento de 2021 da Kenoby tenha identificado que, para 93% dos profissionais de Recursos Humanos entrevistados, as empresas ainda pecam no olhar à saúde mental, o ano de 2022 fortaleceu a reflexão e também ações do mercado em relação ao Burnout.

“Com a introdução da síndrome no CID, essa preocupação tornou-se mais evidente nas empresas, visto que agora faz-se um diagnóstico mais preciso, impactando em uma série de questões, como a produtividade do colaborador, um período de afastamento, ou até mesmo implicações jurídicas caso o quadro clínico não seja tratado com respeito e seriedade. Desenvolver esse cuidado internamente pode ajudar a organização a atingir maior satisfação de seus colaboradores e, também, a alcançar um melhor posicionamento de mercado”, pontua Karen.

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A gravidade por trás do fenômeno

Por mais que estabelecer uma cultura de prevenção seja uma responsabilidade das companhias tanto para diminuir a incidência do Burnout quanto de outras síndromes ou doenças mentais, a mesma atenção deve ser estabelecida para os casos já existentes do fenômeno ocupacional. Especialmente porque muitas pessoas ainda não têm a dimensão das sequelas que ele pode deixar a quem o enfrenta.

Responsável pelo perfil ‘No Trabalho’, que conta com mais de 177 mil seguidores no Instagram, a engenheira e expert em beleza Carla Ramalho Panicio mescla informação com descontração para levar ao seu público dicas sobre maquiagens, shampoos e cosméticos em geral. Por trás de toda a leveza dos vídeos, porém, há os desafios de um dia a dia ainda marcado por um diagnóstico de esgotamento recebido em maio de 2022.

“Minha história com o Burnout começou quando eu entrei na faculdade. Havia sido jogado sobre mim o peso e a responsabilidade de ser a pessoa mais bem-sucedida da família, porque meu pai era essa pessoa no círculo dele. Fui ensinada a me dedicar até a última gota de sangue nas empresas”, diz.

Atuar em uma grande companhia, fazer aquilo que gosta e ter cargo e salário altos. O que para muitas pessoas é a grande meta da carreira já havia se tornado uma realidade para Carla. Todavia, nem mesmo tal cenário foi suficiente para facilitar o enfrentamento a alguns dos grandes desafios do mercado de trabalho moderno, como a sobrecarga e os assuntos corporativos estendidos para fora do horário laboral.

A expert em beleza Carla Ramalho Panicio

A expert em beleza Carla Ramalho Panicio

“Sempre achamos que podemos ir um pouco mais além. Tive essa percepção ao ver, também, minhas melhores amigas terem um Burnout depois de mim. Elas falavam que conseguiriam aguentar mais tempo, sempre buscando ultrapassar um pouco mais o seu limite. O meu chegou quando tive um diagnóstico de estresse. Não era ainda um CID de Burnout e sim de transtorno de ansiedade. Fiquei 14 dias de licença e no dia que voltei [ao trabalho], fui parar no hospital por conta de um ataque de pânico. Os sintomas voltaram como uma avalanche.”

No hospital, Carla precisava falar com o seu psiquiatra. Porém, por estarem em fusos-horários diferentes, a conversa teria que ser adiada para a noite. Durante a espera, ela foi pega de surpresa ao ouvir que deveria tomar uma medicação que a sedasse até o momento da interação. “Desligá-la”, naquele instante, foi a opção julgada mais viável pelo clínico geral para conter a crise vivida pela paciente.

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Sequelas do Burnout

Na conversa com o psiquiatra, a influencer foi informada de que teria que tomar uma medicação utilizada no tratamento de transtornos mentais como a esquizofrenia. Ao compartilhar o relato com o marido, foi incentivada por ele a pedir demissão do trabalho. Por ser da indústria farmacêutica, ter ciência dos efeitos que o remédio causaria trouxe uma preocupação tão grande quanto o diagnóstico atual. “Para ficar bem para trabalhar, eu perderia parte da minha personalidade. Ele tinha medo de não ter a Carla que conhecia”.

Viver o Burnout e ter a coragem para pedir demissão geraram sentimentos distintos. O alívio, por vezes, dava lugar à culpa e à pressão por abandonar um emprego que, para quem estava de fora, era encarado como algo “dos sonhos”.

“O ‘não dá mais’ vem com consequências. Eu ganhava muito bem, tinha reconhecimento dos meus colegas – embora não tanto quanto gostaria da empresa. O ego fica ferido. Saí de onde era referência, de onde era muito boa no que fazia”, compartilha. “Quando você reflete e vê que o trabalho é tudo, você já está no seu limite e próximo de um esgotamento. Ao ser perguntada, eu dizia que me demiti por causa da saúde e tinha que ouvir que não aguentei. Mas será que a gente precisa aguentar? Se você tem que aguentar trabalhar, algo está errado”, acrescenta.

Carla retomou sua rotina profissional priorizando sua página. Uma de suas missões como criadora de conteúdo é mostrar às pessoas que elas podem e devem construir relações mais saudáveis com o seu trabalho.

“Muito se fala sobre a prevenção, mas pouco sobre a consequência que a síndrome tem na vida de uma pessoa. Ainda não chegou o momento [em que me senti inteiramente preparada para voltar bem ao trabalho]. Morreu um pedaço de mim nesse processo e eu sei que nunca mais vou recuperá-lo. Não tem volta. Depois que pedi demissão demorei quatro meses para voltar à minha estação de trabalho de home office. A consequência é muito estendida e as pessoas não entendem isso. Eu ouvi o barulho do Teams no computador do meu marido e comecei a chorar”, conta.

Se reerguer é um desafio, mas é possível

Dar a volta por cima após passar pelo Burnout não é fácil e leva tempo. Assim como Carla, André Santos, Top Voice do LinkedIn, mentor e especialista em marca pessoal e treinamento corporativo, teve o diagnóstico e precisou se reinventar. Seu caso ocorreu em 2016, quando a condição ainda não havia atingido os picos atuais de discussão e conscientização.

“Comecei a sentir muito cansaço, tive crises de ansiedade e me sentia deprimido. Fui parar algumas vezes no pronto-socorro por conta de mal-estares e pressão alta. Nitidamente havia algo errado, mas eu gostava do que fazia e tinha experiência [como consultor]. Eu não sabia o que era a Síndrome de Burnout. Os sintomas me fizeram descobri-la e cheguei a ter um princípio de grave infecção. Foi quando minha esposa disse que precisava de mim vivo. Foi muito difícil não ter mais meu emprego, pois eu era o responsável pela renda”.

Ao pedir demissão, Santos admite ter pego de surpresa seus colegas e gestores. No entanto, a gravidade do que vivenciou o fez se sentir sem alternativas. O momento era de, primeiramente, se cuidar. Foi então que em 2017 conheceu o LinkedIn, uma porta que o incentivou a criar o seu próprio negócio em 2018, até chegar ao status de Top Voice dois anos depois.

“Eu não queria voltar ao mundo corporativo. Não me sentia curado. Foi então que resolvi investir no LinkedIn e seguir vendendo meus treinamentos e cursos. Tive 20 anos empreendendo e 20 anos como CLT, entre idas e vindas porque empreender no Brasil não é fácil, tanto que quebrei em 2008. Tomei a decisão de não querer mais uma rotina CLT, então arrisquei novamente no empreendedorismo. O LinkedIn não é mais só uma plataforma de currículos, mas de marca pessoal, networking, entre outras funções”.

André Santos - Top Voice

André Santos, Top Voice do LinkedIn

O investimento do mentor na plataforma o levou a conquistar cinco prêmios. Entre as conquistas nacionais e internacionais, somadas aos mais de 360 mil seguidores, Santos se encontrou nas palestras e mentorias, oficializando-as como sua principal ocupação.

“O caminho mais fácil seria voltar ao mundo corporativo. Algumas vagas me faziam pensar pela tranquilidade do salário. Mas optei pela liberdade, por não ter chefe e por poder fazer o meu horário. Há muitos desafios, mas a virada foi persistir, entender o LinkedIn e beneficiar a mim e a outras pessoas”, expõe.

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A missão do empregador

Se um funcionário é diagnosticado com Burnout, o primeiro passo é olhar para dentro da empresa e “entender quais falhas no processo estão desencadeando o estresse crônico do funcionário”, afirma Renan Conde, diretor Américas da Factorial.

O executivo ressalta que “a empresa precisa assumir a culpa e acolher esse funcionário, prestar apoio, mas seguir firme em identificar as lacunas do dia a dia. Isso porque, mesmo que o funcionário passe um tempo em recuperação e afastado da organização, no seu retorno o cenário será o mesmo, e possivelmente levará à demissão. Além disso, outros colaboradores estão sujeitos a desencadear a síndrome também”.

Essa insatisfação é confirmada pelo relatório de bem-estar 2022 da Betterfly, plataforma de benefícios corporativos, divulgado no começo de janeiro, evidenciando que 54% dos trabalhadores relatam sentir exaustão, enquanto 50% afirmam lidar com sobrecarga de trabalho.

Para Abel Pinto, psicólogo cadastrado no GetNinjas, app de contratação de serviços, diante de um caso de esgotamento motivado pelo trabalho, a empresa deve oferecer todo o suporte, tanto físico quanto mental. “O ideal é que o indivíduo seja acolhido no retorno ao ambiente de trabalho, sem julgamentos por parte dos colegas ou gestores, ou seja, que tenha uma recepção que valorize o lado humano, sem sobrecarga e com a retomada gradativa das responsabilidades”, recomenda Abel. “Que a empresa possa engajar o colaborador, equilibrando os objetivos do negócio e as aspirações do indivíduo”.

O engajamento também é citado por Marcos Thiele, sócio da Adigo e especialista em cultura organizacional, como uma forma de evitar o fenômeno. “A explicitação de práticas desumanas em um número crescente nas companhias deve provocar reflexão e ajuste. Isso gera consciência para a necessidade e relevância de um modelo pautado pela confiança e autonomia. As pessoas podem atuar de forma naturalmente engajada, não por conta de metas e controles, mas por sentir e ter construído um propósito”, comenta.

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Rede de apoio

Construir uma rede de apoio para enfrentar a Síndrome de Burnout também é um apoiador para tratar o problema. Carla teve no marido um ponto de apoio para compreender melhor os seus limites e, hoje, é uma grande incentivadora do trabalho saudável. Do mesmo modo, André Santos encontrou na esposa uma parceria para poder tomar decisões que colocassem sua saúde e bem-estar acima de qualquer responsabilidade de trabalho.

RH TopTalks 2023

A influenciadora manifesta que não permite que as pessoas que trabalham consigo em seus projetos cruzem barreiras de demanda e expediente, sendo enfática ao insistir que nenhuma responsabilidade profissional seja carregada para o momento de descanso. Por mais que fazer sua empresa crescer seja um objetivo, a qualidade das entregas não justifica que a saúde fique em segundo plano.

“As pessoas têm, muitas vezes, medo de tomar uma atitude. Se não for pela sua rede de apoio, então, ela não conseguirá agir. O quanto eu puder falar para as pessoas tomarem atitudes e pensarem juntas no que pode ser feito, eu farei. A empresa toma atitude quando um órgão governamental age. As pessoas não têm ideia de que ao tirar uma licença médica, a empresa é obrigada a reportar para o Ministério do Trabalho. E é muito bom que o órgão saiba, porque ele é quem reverterá a situação”, finaliza.

Por Bruno Piai