Nós estamos sofrendo.

Confesso, só pra vocês: fiquei abalada com os últimos acontecimentos de agressão sistemática à humanidade.

Agressão à humanidade, sim, pois não estão agredindo um jovem negro de 22 anos , ao vivo e a cores. Estão praticando a mais primária forma de autofagia (ato do homem ou animal nutrir-se da própria carne).

Ao agredir um jovem negro que se coloca à disposição para expor sua arte por meio do esporte, os agressores estão externando o que têm de mais doentio dentro de si – o ódio, o medo, porque está visível a maestria dos negros naquilo a que se dedicam e expõem com devoção.

Fiquei abalada porque já vinha colocando isso nas minhas matérias, há muito tempo: o crescimento incontrolável da violência racial, por parte daqueles que estão com medo da perda de poder, ao reconhecer que chegamos a um ponto de inflexão (momento em que uma decisão que tomamos pode fazer nossa vida mudar totalmente de rumo). O poder negro é uma realidade.

Nós, Antirracistas - IMG II

Séculos e séculos de dominação eurocêntrica, que vinha intocável, mas que agora começa a ruir, tocada por suas próprias mãos, seus próprios atos.

O que fazer?

Sair do estado de indignação e passar à ação.

Precisamos ajudar as tais pessoas que nos odeiam mostrando-lhes o porquê de suas ações no presente, reflexo do passado guardado em letras “sacralizadas”.

Sou cristã, mas questiono a instituição igreja constituída pela busca de poder e riqueza. Não podemos esquecer, jamais, que em “ 1452-55, Portugal e a Igreja Católica se uniram para reduzir [praticamente] todos os africanos à escravatura perpétua. Em 1455, o papa Nicolau V concedeu a Afonso V, Bula Dum Diversas, entre outros direitos, o de reduzir à escravatura perpétua os habitantes de todos os territórios africanos a sul do Cabo Bojador:

(…) nós lhe concedemos, por estes presentes documentos, com nossa Autoridade Apostólica, plena e livre permissão de invadir, buscar, capturar e subjugar os sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos de Cristo, onde quer que estejam, como também seus reinos, ducados, condados, principados e outras propriedades (…) e reduzir suas pessoas à perpétua escravidão, e apropriar e converter em seu uso e proveito e de seus sucessores, os reis de Portugal, em perpétuo, os supramencionados reinos, ducados, condados, principados e outras propriedades, possessões e bens semelhantes (…)” 

E mais…

Em 8 de janeiro de 1554, estes poderes foram estendidos aos reis da Espanha.

Em 1455 Nicolau V publicou uma outra Bula dirigida a D. Afonso V, a “Romanus Pontifex” que reafirma o texto da Dum Diversas ao dizer:

Guinéus e negros tomados pela força, outros legitimamente adquiridos foram trazidos ao reino, o que esperamos progrida até a conversão do povo ou ao menos de muitos mais. Por isso nós, tudo pensando com devida ponderação concedemos ao dito rei Afonso a plena e livre faculdade, entre outras, de invadir, conquistar, subjugar a quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudo praticar em utilidade própria e dos seus aos mesmos D. Afonso e seus sucessores, e ao infante. Se alguém, indivíduo ou colectividade, infringir essas determinações, seja excomungado”.

Fonte: Matéria original: 1452-55: quando Portugal e a Igreja Católica se uniram para reduzir [praticamente] todos os africanos à escravatura perpétua. https://www.geledes.org.br/1452-55-quando-portugal-e-igreja-catolica-se-uniram-para-reduzir-praticamente-todos-os-africanos-escravatura-perpetua/

Em 1493, a “Dum Diversas” foi mais uma vez reforçada com a emissão da Bula “Inter Caetera”, Papa Alexandre VI, fazendo o realinhamento da divisão do Novo Mundo entre a Espanha e Portugal, que dizia:

“Esta bula origina-se de termos feito doação, concessão e dotação perpétua, tanto a vós (reis), como a vossos herdeiros e sucessores (reis de Castela e Leão), de todas e cada uma das terras firmes e ilhas afastadas e desconhecidas, situadas em direção do ocidente, descobertas hoje ou por descobrir no futuro, seja descoberto por vós, seja por vossos emissários para este fim destinados.

Falamos muito da importância da história que nos contaram , dos valores, da cultura ancestral e sua  transmissão às gerações futuras. Eis aí o legado deixado às futuras gerações de Portugal e Espanha.

O mais provável é que o apego a esses presentes que lhes foram ofertados tenham se fixado na literatura, no ensino, em todas as formas de demonstração de poder e dominação.

E, até os santos africanos tornaram-se brancos, aqui no Brasil, em decorrência do sincretismo (fusão de diferentes doutrinas para a formação de uma nova, seja de caráter filosófico, cultural ou religioso).

Mas o que faremos com os enredos das escolas de samba, contando ao longo dos anos a nossa história, ressaltando a figura de nobres europeus, alas de casais dançando tal qual a realidade dos salões imperiais?

O que estamos contando para os nossos filhos, netos e o que estes teimarão em continuar reproduzindo, por quantas outras gerações?

O que odeiam em nós, pessoas negras? 

O que disseram que éramos, desconsiderando o tempo e o histórico cultural, sustentando que ainda seremos no futuro o que éramos há milênios?

Evoluímos, acompanhamos o desenvolvimento tecnológico, somos representantes do Afrofuturismo.

“O Afrofuturismo é a ideia radical de que pessoas negras existem no futuro”, segundo Nátaly Neri.

Afrofuturismo é um movimento cultural, estético, social e político que traz a possibilidade de criar narrativas pretas que fogem da posição da dor para construir um futuro próspero com base na ancestralidade onde nós, pessoas pretas, nos vemos de maneira positiva, múltipla e autônoma.

Dentro de uma perspectiva preta, tanto africana quanto diaspórica (diáspora africana é um fenômeno caracterizado pela imigração forçada de africanos, durante o tráfico transatlântico de escravizados), o Afrofuturismo é um movimento que une tecnologia e ficção científica e projeta futuros a partir do entendimento da ancestralidade e recuperação das tradições e valores africanos. Ref.: Sun Ra.

  Nós, Antirracistas - IMG III

Afrofuturismo é muito bem representado por Sankofa,

um pássaro que tem sua cabeça voltada para a

cauda e pode ser traduzido por :

“retornar ao passado para ressignificar

o presente e construir o futuro”

 

 

Você que está conosco nessa jornada Antirracista: fiquemos com essa imagem e o conceito de Sankofa em nossas mentes, pois indicam uma alternativa possível de, a longo prazo, nos auxiliar a mudar a situação atual, de crise de ódio, para a ressignificação pelo conhecimento.

Por Jorgete Lemos, sócia fundadora da Jorgete Lemos Pesquisas e Serviços – Consultoria. É uma das Colunistas do RH Pra Você. O conteúdo desta coluna representa a opinião do colunista. Foto: Divulgação.