De acordo com dados do Departamento de Estatísticas do Trabalho (BLS) dos EUA, no mês de setembro de 2021 cerca de 4,4 milhões de norte-americanos pediram demissão de seus empregos. A estatística era a maior de todos os tempos, até que em novembro o recorde foi superado com 4,5 milhões de pedidos de desligamento. No meio tempo, em outubro, as saídas voluntárias alcançaram a marca de 4,2 milhões. 

Motivada por diversos fatores econômicos – como a inflação, que registrou a maior elevação mensal da série histórica em outubro e tem feito os trabalhadores procurarem posições que mantenham seu poder de compra –, há também elementos culturais e circunstanciais por trás da chamada Great Resignation (Grande Renúncia, na tradução literal).

Pressão, Burnout, cargas horárias excessivas, aversão ao retorno presencial, busca por outros objetivos – intensificada pela pandemia, entre outros fatores, fizeram com que as pessoas revissem projetos pessoais e profissionais – até mesmo a discussão em torno da vacina foram agravantes para a situação.

“Esse é um movimento que tem sido liderado pelos profissionais mais jovens, de até 30 anos, que estão cansados do modelo atual de trabalho, às vezes pouco flexíveis, com microgerenciamento e organogramas verticais”, explica Rodrigo Costa, CEO da AG Immigration, escritório de advocacia especializado em imigração.

Segundo Ryan Roslansky, CEO do LinkedIn, é importante as pessoas terem em mente que os pedidos de demissão não significam uma onda de desemprego. Em entrevista à revista Time, o executivo esclareceu que em 2021 houve aumento de 54% na porcentagem de usuários que alteraram seus empregos ou sua área de atuação na rede social, em relação a 2020.

Além disso, fatores estruturais são determinantes para que a iniciativa dos Millennials e da Geração Z estadunidense possa até parecer “radical” aos nossos olhos, mas não necessariamente deva ser analisada como um cenário de tanto risco para quem se desligou do trabalho.

Pedidos de demissão nos EUA podem incentivar brasileiros a fazerem o mesmo?

À BBC, o professor de Economia da Universidade Carlos III de Madrid (Espanha) e especialista em Economia do Trabalho, Juan José Dolado, explica que existe fluidez no mercado de trabalho dos Estados Unidos. Ou seja, por ter uma cultura mais flexível e também por conta das taxas de desemprego não serem altas no país, é mais fácil para o trabalhador se recolocar em uma nova empresa, o que dá, de certa forma, segurança para que ele tenha maiores exigências quanto ao que espera do empregador.

Tal fator justifica, por exemplo, que a Grande Renúncia não tenha chegado à Europa, embora, por parte de especialistas econômicos, tenha havido a previsão de que o fato poderia acontecer. No velho continente, trocar uma vaga por outra não é tão simples.

O Brasil pode viver fenômeno semelhante?

Uma pesquisa realizada em novembro do ano passado pela recrutadora Robert Half traz números que ajudam a compreender a relação do brasileiro com o trabalho. O levantamento, feito com 1.161 profissionais, revela que 49% visam novas oportunidades em 2022. Questionados sobre a motivação da mudança, 61% pretendem mudar de empresa, mas querem permanecer na mesma área. Os outros 39% afirmaram ter interesse em uma nova área de atuação, mudança de segmento ou de profissão.

“Nesse cenário, podemos trabalhar com duas hipóteses. Tanto de um movimento positivo, que se divide entre a busca de mudança de emprego e a vontade de empreender, quanto na ótica inversa, em que a desistência pode ser atrelada à insatisfação com o trabalho atual, dado que a pandemia trouxe maior pressão psicológica em relação à vida profissional”, afirma Fernando Mantovani, diretor-geral da Robert Half para a América do Sul.

Na 18ª edição do Índice de Confiança Robert Half® (ICRH), a consultoria ainda demonstra, com base na análise do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), que 51% das demissões dos profissionais qualificados no terceiro trimestre de 2021 ocorreram a pedido dos colaboradores qualificados, ou seja, de pessoas acima de 25 anos, que possuem curso superior completo e atuam no mercado de trabalho privado. “O que percebemos é que esse percentual vem crescendo trimestre a trimestre, indicando um importante movimento dos profissionais em busca de oportunidades mais alinhadas ao seu perfil e momento de vida”, afirma o diretor.

No entanto, enquanto nos Estados Unidos a taxa atual de desemprego está em 3,9%, no Brasil a estatística, embora tenha recuado ao final do ano passado, é de 12,6%, o equivalente a 13,5 milhões de desempregados. Como consequência, de acordo com Lucas Oggiam, diretor do PageGroup, é pouco provável que por aqui haja uma onda voluntária de demissões semelhante à norte-americana.

“O Brasil não vem desfrutando há alguns anos do que economistas classificam como ‘pleno emprego’. Não há, aqui, o nível de segurança de emprego que a maioria das pessoas possui nos EUA. Economicamente, o país ainda passa por tempos de grande instabilidade – sem mencionar política –, o que também reforça a insegurança para alguém considerar ficar desempregado de forma voluntária. Isso tende a reforçar o desejo do latino-americano em estar empregado (mesmo que mal-empregado) do que arriscar ficar desempregado”, diz.

A discrepância econômica pode ser notada também na forma como as populações foram auxiliadas durante a pandemia. A CEO da The Soul Factor, Erica Castelo, recorda que “até o ano passado, o governo norte-americano deu auxílio-pandemia, o que é mais um recurso aos trabalhadores para se sustentarem enquanto trocam de emprego, visto que o auxílio foi de US$1.400,00 – o equivalente a mais de R$7.000,00 por pessoa”. Por aqui, o auxílio emergencial foi de R$600.

O CEO da JobConvo, Ronaldo Bahia, elucida que qualquer comparação mercadológica entre EUA e Brasil deve considerar o quanto “a dinâmica entre seus mercados de trabalho é distinta”. Para o executivo, no entanto, embora o universo do trabalho estadunidense facilite a recolocação, as organizações podem enfrentar problemas – como já estão – se não redefinirem algumas de suas práticas.

“A realidade do mercado norte-americano, hoje, é que existem vagas de trabalho de sobra, porém não há candidatos interessados nestas, em função da baixa remuneração e da ausência de garantias. As pessoas que têm como se sustentar financeiramente, de alguma forma, são as que optam por não continuar empregadas e, também, não buscar uma recolocação. Isto gera um grande problema para aquele país, caso isso continue acontecendo no longo prazo”, salienta.

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Crise norte-americana é oportunidade para brasileiros

Segundo Rodrigo Costa, as dificuldades enfrentadas pelos gestores norte-americanos podem abrir portas para os profissionais brasileiros que almejam uma vaga de trabalho no exterior. “A boa notícia é que isso abre espaço para profissionais estabelecidos do Brasil e de outros países, que não sentem tanto esses choques culturais quanto os grupos mais jovens e que estão motivados a buscar uma carreira nos EUA”.

De acordo com o BLS, a participação da mão de obra estrangeira na força de trabalho norte-americana caiu de 17,4% para 17% entre 2019 e 2020. A mudança, afirma o órgão, foi motivada pela pandemia do novo coronavírus. “A expectativa, portanto, é que aos poucos essa participação retorne ao patamar anterior e até mesmo se amplie”.

Motivos para isso não faltam. Com mais de 10,4 milhões de vagas abertas, os Estados Unidos estão facilitando a emissão de vistos permanentes para cidadãos estrangeiros que queiram trabalhar no país, seja em setores menos especializados – como construção civil, limpeza, alimentação ou varejo –, seja em áreas que exigem mão de obra mais qualificada, como medicina, enfermagem, engenharia, tecnologia da informação e aviação.

Segundo o site de vagas de emprego Indeed, entre junho de 2020 e junho de 2021, a busca por vagas no exterior pelos usuários brasileiros cresceu quase 20% na plataforma da empresa. “Existe uma grande oportunidade, talvez única, para o desenvolvimento de carreiras no exterior. Para além da conjuntura social, há grande influência da variação cambial entre real e dólar, que faz com que os salários oferecidos nos Estados Unidos sejam especialmente atraentes para o público brasileiro”, diz Felipe Alexandre, sócio-fundador e advogado da AG Immigration, ressaltando ainda que existem diversos tipos de vistos para entrar nos EUA, cada um específico para certas situações e qualificações profissionais.

“Hoje os vistos EB, ou Employment Based, como são conhecidos, são os mais usados para os brasileiros que querem trabalhar nos Estados Unidos. Mas é importante destacar que, dependendo do caso, podem existir opções mais ou menos burocráticas”, complementa.

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É preciso ter cuidado com efeito manada?

Embora o Brasil não enfrente, segundo os especialistas ouvidos na matéria, o risco de ter sua própria Great Resignation, ainda assim é de extrema importância as empresas reverem alguns pontos de sua cultura organizacional, especialmente para que não aconteça um efeito manada – uma demissão levar a outras. Na última década, o Brasil foi o líder em pesquisas de rotatividade, chegando a apresentar índices de turnover mais de 2x maior do que a média mundial.

Para Ronaldo Bahia, mais do que nunca as companhias prezam rever ações que possam diminuir o risco de desligamentos, sejam eles voluntários ou partindo do próprio negócio. “A manutenção de um bom ambiente de trabalho, de remuneração competitiva e benefícios adequados são os principais pontos para a retenção dos colaboradores na empresa. E, claro, a constante busca de engajamento das pessoas no propósito do negócio. Desde a seleção das pessoas que comporão o time da empresa, a busca pelos perfis adequados faz com que o risco de desligamento seja diminuído”, diz.

Lucas Oggiam acrescenta que os líderes devem conhecer quem são as pessoas que integram a companhia. Para ele, os desejos, anseios e ambições individuais de cada colaborador são informações que não podem passar batido. “Com isso, planos de ação específicos podem ser colocados em prática para uma melhor política de retenção individual dos principais talentos. Ter cada vez mais contato com o indivíduo, e não simplesmente classificá-lo como mais um número, é o melhor que as empresas podem fazer por elas mesmas.

Pedidos de demissão no Brasil

No Brasil as correntes de demissão, sejam elas internas ou estendidas a mais organizações, costumam ser puxadas por profissionais de cargos mais altos e que tiveram acesso à educação. Erica deixa claro que as empresas devem se abrir para compreender que os profissionais “estão cada vez menos preocupados com carreira formal e estão mais determinados em equilibrar o trabalho com a vida pessoal, em ter qualidade de vida, e em poder trabalhar em qualquer lugar do mundo pelo home office”. Para ela, a exigência é para que as organizações mostrem cada vez mais o lado humano do negócio.

Além disso, as empresas precisam se atentar à sua imagem reputacional, uma vez que movimentos estão se fortalecendo para expor más práticas. Um deles é a corrente #QuitMyJob (“Me Demito”, na tradução literal), que já tomou conta do TikTok, com mais de 200 milhões de visualizações, até então, na hashtag.

A iniciativa virtual foi criada não propositalmente em 2020 pela norte-americana Shana Blackwell. Aos 19 anos, à época, ela usou um microfone para anunciar de uma forma não muito educada sua saída do WalMart em frente aos colegas e aos clientes da unidade. A jovem alegou ter vivido no supermercado dois anos “insuportáveis” e revelou que foi vítima de assédio moral.

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Embora a hashtag tenha ganhado força principalmente nos Estados Unidos, a tendência não está distante no Brasil. No LinkedIn, por exemplo, não é difícil encontrar desabafos referentes a desligamentos. Na opinião da consultora de RH Célia Lourenço, é necessário, porém ter cuidado com a exposição.

“Infelizmente, muitas vezes, por melhor que seja a iniciativa, nem sempre as consequência são somente positivas. Sou a favor de expor práticas abusivas, mas é preciso haver extrema cautela. Hoje, os recrutadores avaliam as redes sociais do candidato e encontrar nelas publicações que falem mal de seus ex-empregadores podem contribuir negativamente em um processo seletivo. Até mesmo quando as reclamações são justas. Nem todas as organizações, por exemplo, entendem que situações de assédio são um problema real. Portanto, embora eu admita ser uma defensora de movimentos como o #QuitMyJob, reforço que os profissionais, principalmente os mais jovens, não podem se deixar levar pela emoção”, finaliza.

Por Bruno Piai