Embora o trabalho a distância não seja necessariamente uma novidade, o tema, seguramente, nunca foi tão discutido quanto hoje, diante do contexto pandêmico. Empresas até então com modelo de trabalho 100% presencial precisaram se adaptar à realidade imposta pelo novo coronavírus para, se não ter todo o time atuando remotamente, ao menos contar com parte dele trabalhando de suas casas ou de um outro local diferente do escritório.
Apesar do atual modelo de home office contar com particularidades que não seriam vivenciadas fora de uma pandemia – como o homeschooling para as crianças, o isolamento social e o estado ainda maior de alerta e preocupação com a saúde – ainda assim ele agrada.
O estudo “Série Global Stakeholder – O Futuro do Trabalho, Agora”, realizado pela Salesforce, ouviu mais de 20 mil pessoas de 11 países (incluindo o Brasil) para entender quais foram os impactos da Covid-19 em sua rotina profissional, e um resultado chamou a atenção: 52% dos entrevistados alegaram que trocariam de emprego caso fosse necessário para o trabalho remoto seguir como parte de seu dia a dia.
A aceitação do trabalho a distância recebe ainda mais crédito por conta das organizações que, já adaptadas e satisfeitas com o modelo, decidiram expandir regionalmente os seus times. Uma vez que a atuação em qualquer localidade mantém os índices de performance e produtividade altos, a abertura para contar com profissionais de todo e qualquer lugar é maior. Segundo a Mokaly, plataforma de gestão de trabalho remoto, em um cenário no qual o trabalho fosse 100% remoto no futuro, 56,8% dos profissionais aproveitariam essa oportunidade para se mudar de cidade ou país.
O gancho do estudo da Mokaly indica outra importante tendência da rotina fora do escritório: se o trabalho a distância permite que as empresas possam contar com pessoas de qualquer cidade ou estado, por que não expandir para outros países e continentes? O aumento da implantação do home office pode ter, por consequência, o crescimento do “home office apátrida”.
Morar longe é problema? Não mais!
De acordo com Irina Bezzan, Managing Director da The Bridge, rede global de talentos que reúne profissionais do mercado digital, a ausência de barreiras geográficas promove uma série de novas oportunidades para organizações e profissionais.
“Com o avanço tecnológico, não há mais barreiras físicas capazes de frear o salto de um profissional que quer trabalhar em outro país e acrescentar em seu portfólio algo que vai além do nome de uma empresa conhecida. Tem a ver com background, novos desafios, vivências, uma nova cultura. O trabalho híbrido é uma excelente opção, facilitando até mesmo a adaptação ao novo país e à cultura do local. Com menos deslocamento, sobra mais tempo para se aprofundar em questões que parecem ser meros detalhes, mas, na prática, fazem toda diferença”, pontua.
A especialista salienta que o “futuro híbrido” não deve demorar para deixar para trás o status de tendência e se assumir como um dos principais mantras do futuro do trabalho, o que vai exigir atenção das empresas para se atentar à infraestrutura e às condições de trabalho de seus funcionários remotos.
Renato Alves de Oliveira, Sócio da Bicalho Consultoria Legal, empresa especializada em imigração, esclarece que a cultura organizacional, uma vez que tende a ser (ou já ter sido) mudada em diversas organizações, precisa ser assertiva e bem conduzida. Além disso, os colaboradores precisam estar preparados para o novo panorama do mercado.
“Segundo uma análise do McKinsey Global Institute, de dezembro de 2020, o potencial para prosseguimento do trabalho remoto após a pandemia se concentra entre trabalhadores qualificados. Para um profissional ser considerado híbrido, ele tem que estar capacitado para lidar com diferentes situações e ter autonomia. É preciso ser um profissional multitarefa e multipotencial”, diz. Oliveira revela que, na Bicalho, se tornou maior a procura por moradia em outros países, sendo os Estados Unidos o líder das buscas.
Vale destacar, segundo o Itamaraty, que atualmente cerca de 3 milhões de brasileiros moram no exterior, sendo quase a metade (1,4 mi) nos Estados Unidos. De acordo com a Airinc, consultoria organizacional norte-americana, um levantamento feito com 155 empresas internacionais mostrou que, em 64% delas, houve aumento na demanda de funcionários por vagas de trabalho fora do escritório, o que motiva a facilitação de vistos de trabalho para os chamados “nômades digitais”, profissionais aptos para a realização do teletrabalho sem fronteiras.
Choque de culturas
Embora a ideia de contratar colaboradores de outros países seja positiva para muitos negócios – o profissional brasileiro ainda tem a seu favor a desvalorização do real em frente ao dólar, o que motiva que companhias que buscam contratações apátridas olhem para o país com um pouco mais de atenção e atração – é necessário pontuar os desafios que os potenciais gestores e empregados podem enfrentar.
Irina explica que “o trabalho remoto exige mais planejamento, disciplina e organização. Neste modelo, você não tem ninguém de olho no seu notebook, fazer micro managing se torna uma tarefa cansativa e difícil, e a relação passa a ser mais de resultado e de responsabilidade do que de controle. Também não temos reuniões presenciais e almoços descontraídos com colegas. Para algumas pessoas, essa interação pode fazer muita falta, especialmente para aqueles que se sentem mais confortáveis quando são direcionados por um gestor”.
Para Oliveira, também é importante acrescentar, entre os desafios dos profissionais apátridas, os seguintes pontos:
- O modelo híbrido, hoje, ainda não está regulamentado na legislação trabalhista, então algumas burocracias legais precisam ser enfrentadas;
- Trabalhar em casa não exime o profissional de ter outras preocupações, por exemplo com familiares e que podem ocorrer durante o período do expediente;
- Os obstáculos que fazem parte da rotina de trabalho ultrapassam as barreiras do escritório. As questões do idioma e do modo de lidar com pessoas de culturas diferentes, citadas por Irina, são exemplos importantes.
“Não só a Bicalho como a maioria das empresas de consultoria ou de outros ramos tiveram que buscar novos meios de se comunicar com seus clientes, colaboradores e público como um todo. As mudanças na rotina foram facilitadas por ferramentas e iniciativas inovadoras, mas os desafios permanecem”, ressalta o especialista.
Como fica a legislação?
Quanto às questões da burocracia legal, embora não haja impedimento para, por exemplo, um brasileiro que mora em outro país trabalhar em empresas daqui, os contratos exigem atenção.
A Reforma Trabalhista de 2017, que conta com um capítulo dedicado ao trabalho remoto, e as leis sancionadas durante o período pandêmico, flexibilizando práticas empresariais, são ainda novidades que dizem respeito a uma temática com mais discussões do que leis em âmbito judicial.
Primeiramente, a contratação no molde de teletrabalho exige que a informação esteja presente em contrato, em forma de aditivo, com todas as condições estabelecidas descritas. Além disso, embora a CLT não tenha especificamente uma orientação sobre o trabalho a distância entre países, não é possível a ocorrência de reduções salariais. Embora a Consolidação das Leis Trabalhistas não tenha, também, uma jurisprudência sobre os benefícios, a oferta não pode ser prejudicial ao colaborador, uma vez que o descumprimento de convenções pode justificar que a empresa seja processada. Contudo, nada impede que algumas adaptações sejam realizadas.
A recomendação é que, em casos de mudança que parta da iniciativa do próprio colaborador, as empresas se baseiem nas orientações legais referentes ao teletrabalho. Já no sentido oposto, com a organização solicitando a mudança do funcionário para uma outra pátria, a Lei do Expatriado deve ser seguida. Nela consta, entre outros tópicos, a obrigatoriedade da conversão do pagamento na moeda local e férias no Brasil com a família, custeadas pelo empregador após dois anos de trabalho no exterior. Para outros efeitos, os moldes da CLT serão seguidos, como recolhimento de FGTS e pagamento de 13º salário.
As vantagens da rotina apátrida
Em artigo, Bernardo Wertheim, CEO e Chief Happiness Officer da The Bridge, diz que “muito além da segurança, a flexibilidade [oferecida pelo home office] para transitar entre o escritório e o sofá de casa garante ao colaborador a autonomia que pode ser muito útil em processos criativos”.
A flexibilidade é, inclusive, o conceito destacado por Renato Oliveira. Para ele, ter um ambiente próprio, evitar questões como o tempo de deslocamento (e o consequente estresse) e ter, em alguns negócios, horários e jornadas de trabalho alternativos (e sem deixar de lado a necessidade de se adaptar ao fuso-horário), contribuem para engajar e aumentar a produtividade. Além disso, a quebra de barreiras geográficas põe o colaborador em contato com novas experiências, culturas e ideias, um panorama que oferece conhecimento e capital humano.
Para Irina, neste momento de anywhere office, “desde que o profissional entregue resultados, o local passa para terceiro plano. Por isso, o outsourcing e o nearshoring, especialmente de profissionais de tecnologia, estão ainda mais em evidência nos últimos tempos. Este é o momento ideal para conseguir uma oportunidade no exterior, sem sair de casa”.
A Associação Brasileira de Consultoria e Assessoria em Comércio Exterior (Abracomex) lista os seguintes países como aqueles que mais procuram por mão de obra brasileira, seja para trabalho presencial ou remoto: Estados Unidos, Portugal, Canadá, Irlanda, Alemanha, Austrália, Nova Zelândia e Suécia.
“Para garantir uma rotina tranquila e uma atmosfera de trabalho saudável, as empresas devem aperfeiçoar a comunicação com os times, investindo em reuniões e feedbacks constantes, além da adoção de ferramentas que permitam interações completas entre os times de forma macro, dispensando plataformas muito locais e que não atendam os interesses de uma equipe plural”, finaliza Irina.
Por Bruno Piai