Quem nunca ouviu o ditado popular “a beleza está nos olhos de quem vê”? No fundo, o que o ditado sugere é que cada indivíduo tem seu próprio conceito de beleza e, por isso, a beleza não seria um atributo de quem a exibe, mas muito mais de quem a percebe.
Quando pensamos em liderança, existe uma área de pesquisa que, de forma semelhante ao ditado, sugere que a liderança – assim como a beleza – não depende exclusivamente do comportamento do líder, mas, principalmente, da percepção de quem o vê.
Em outras palavras, os liderados (e outras pessoas ao redor do líder) têm um papel importante em reconhecer e legitimar uma pessoa no papel de líder ao enxergar nele (o líder) atributos que eles (os liderados e as pessoas ao redor) entendem como sendo atributos de liderança.
Tais efeitos são geralmente explicados em termos de processos cognitivos pelos quais as pessoas dão sentido aos outros (ou seja, ‘fulano é bonito’, ‘fulana é líder’), uma área da teoria normalmente referida como processos sociocognitivos.
E por que é importante ser percebido como líder?
Ser percebido como líder influencia as avaliações de eficácia e potencial de si mesmo, e melhora (ou limita) o acesso de um líder a recursos críticos para si e para sua equipe. As percepções de liderança, portanto, são importantes para os resultados individuais (por exemplo, progressão na carreira), da equipe (por exemplo, coesão da equipe) e organizacionais (por exemplo, desempenho e identificação).
Mas curiosamente, ao contrário do ditado, que sugere que cada pessoa pode ter sua própria percepção de beleza, no que se refere à liderança, o que os pesquisadores descobriram é que há um conjunto comum de características que as pessoas precisam “enxergar” numa outra pessoa para que ela possa ser percebida como líder. Ou seja, quanto mais uma pessoa possuir essas características, mais “prototípicas” da categoria de líder elas serão.
Aqueles que são vistos como prototípicos em uma categoria são recompensados e terão facilidade em ter sucesso nela, enquanto aqueles que são vistos como menos prototípicos são tratados com ceticismo e precisam lutar para se encaixar. Em resumo, existe no campo da liderança o que os pesquisadores chamam de ‘esquema de liderança’ ou ‘protótipo de líder’.
E as pesquisas têm consistentemente revelado que, dentre as características que definem o protótipo de líder, está o atributo masculinidade. Ou seja, a categoria “líder” tem um protótipo masculino. Como resultado, é normalmente mais fácil para as pessoas verem indivíduos que exibem características, traços e padrões sociais considerados masculinos como uma boa opção para cargos de liderança, do que pessoas que exibem alto grau de feminilidade.
Isto, em uma cultura em que os homens cisgêneros já possuem a maioria das posições de liderança, significa que muitas pessoas ainda mantêm uma associação “líder = homem” nos seus cérebros (muito embora pesquisa recente dos professores Lynn Offermann e Meredith Coats, da George Washington University, mostre que essa associação está enfraquecendo nos últimos anos). O resultado dessa associação é a exclusão das mulheres (cis ou trans) e de pessoas de outros gêneros no modelo mental da liderança.
Isso se confirma quando olhamos para os números. Por exemplo, mulheres representam 49,7% da população mundial. Mais mulheres do que homens ao redor do mundo cursam o ensino superior. Parece não lhes faltar conquistas acadêmicas ou conhecimento técnico. Entretanto, elas alcançam cargos medianos de gestão e param, não ascendem aos mais altos escalões.
Os estados signatários do Acordo de Paris, através da ODS5 da Agenda 2030, concordam que a equidade de gênero é crucial para o atingimento do desenvolvimento sustentável. Existem normas e legislações ao redor do mundo que estabelecem cotas de gênero em Conselhos de Administração ou Diretoria de empresas públicas ou listadas.
Entretanto, pesquisas globais mostram que a proporção de mulheres em posições de alta liderança no ambiente corporativo e em Conselhos de Administração é de 32% e 19,7%, respectivamente, sendo que apenas 5,0% dos CEOs e 6,7% de Presidentes de Conselho são mulheres.
Não obstante as políticas de cotas implementadas em diversos países com o objetivo de aumentar a representatividade feminina na política, também nessa esfera mulheres são minoria, representando 26,5% dos parlamentares e liderando apenas 22,8% dos ministérios em nível mundial. Ademais, em apenas 11,3% dos países mulheres ocupam o cargo de chefe de estado e em 9,8% dos países mulheres são líderes de governo.
A desigualdade de gênero no ambiente corporativo e político se reflete em diversas dimensões. Por exemplo, dados da última Conferência anual do Clima, realizada em Dubai entre 30 de novembro e 12 de dezembro, mostram que a representatividade feminina nas delegações aumentou de 12% (em 1995) para 38% (em 2023). Ainda assim, apenas 15 dentre 133 líderes mundiais presentes na COP28 são mulheres.
E qual o impacto dessa desigualdade de gênero na liderança? Muitos.
Mulheres têm um modo específico de liderar, tendendo a valorizar relacionamentos mais do que status. Elas têm propensão a focar no processo, além do resultado. Elas tendem a usar a persuasão para influenciar. Elas têm predisposição a colaborar mais do que competir e a evitar conflitos diretos ao enfrentar disputas.
Mulheres trazem uma perspectiva alternativa e valiosa para o ambiente de trabalho, para o gerenciamento de pessoas e para a tomada de decisão. Existem evidências de que empresas com mais mulheres em postos importantes possuem melhor desempenho, são mais lucrativas e socialmente mais responsáveis.
Por esta razão, é desejável que os pontos fortes femininos complementem o estilo masculino de gestão. Executivos acreditam que existe conexão entre desempenho financeiro e papéis de liderança ocupados por ambos os gêneros.
Além disso, representatividade feminina em altos cargos é um indicador de uma cultura inclusiva. E culturas inclusivas têm relação com engajamento, retenção de pessoas, produtividade e levam a melhores resultados. Renunciar à diversidade de gênero na alta administração pode colocar em risco o sucesso e a sustentabilidade dos negócios.
A comunidade internacional parece atenta. A professora de Harvard Claudia Goldin, ganhadora do Nobel de Economia em outubro, não por acaso tem como principais temas de pesquisa a participação das mulheres no mercado de trabalho e a equidade entre casais, com foco em como a organização do núcleo familiar influencia na desigualdade de gênero no trabalho.
Mulheres são proprietárias de apenas 38% da riqueza mundial e estima-se que o PIB global seria 14% maior se as mulheres ganhassem o mesmo que os homens. Estudo sobre disparidade de gênero no emprego calcula que o PIB per capita global seria quase 20% maior a longo prazo se o emprego feminino fosse aumentado para o mesmo patamar dos homens. No ritmo atual, se nada for feito, é estimado que serão necessários 151 anos para se eliminar a disparidade global de gênero.
Quando olhamos para o contexto do empreendedorismo, também percebemos essa situação de desigualdade. Ou seja, o protótipo de “empreendedor” também parecer ser masculino e influencia sobremaneira a cognição e o comportamento tanto dos próprios empreendedores quanto de agentes interessados externos (Zhao e Yang, 2020).
Muito embora as mulheres vêm aumentando sua participação e melhorando a representatividade em termos de gênero, bem como estão se inserindo em uma gama maior de setores da economia, sendo alguns deles considerados antes como de atuação exclusiva do gênero masculino, o avanço percebido é lento e passa pelo enfrentamento de dificuldades similares àquelas de presença de mulheres na liderança corporativa.
Em termos mundiais, o relatório GEM (Monitor de Empreendedorismo Global) demonstra que a proporção de mulheres presente na etapa inicial de novos empreendimentos é menor que a de homens em 91,8% dos 49 países participantes da pesquisa em 2022. Ou seja, quando se considera o número total de pessoas que ingressam no empreendedorismo, a taxa de participação das mulheres é superior à dos homens somente em quatro das economias analisadas: Togo, Indonésia, Polônia e Qatar.
Já em relação aos empreendimentos consolidados, historicamente, existe a predominância masculina à frente dos negócios, considerando que o fenômeno do empreendedorismo feminino é relativamente mais recente. Dessa forma, mesmo com a participação crescente das mulheres à frente de novos negócios, levará um tempo para que exista uma equidade de gênero nessa composição.
Ainda segundo as pesquisas do GEM, condições sociais, acesso restrito a recursos essenciais e a própria política fiscal do país de atuação podem impactar as taxas de saída relativas mais elevadas para as mulheres. O nível elevado de taxas de saída das mulheres dos empreendimentos antes da sua consolidação indica contextos econômicos mais voláteis, onde estabelecer modelos de negócios estáveis pode ser um grande desafio para as mulheres.
Assim como em ambientes corporativos e políticos, a falta da presença de mulheres no empreendedorismo traz consequências tanto para as próprias mulheres na conquista da sua igualdade de direitos quanto para o mundo dos negócios, uma vez que as mulheres possuem contribuições importantes para este ambiente de comportamento predominantemente masculino.
Na pesquisa GEM, temas como sustentabilidade social e ambiental nas decisões de negócios são frequentemente citadas pelas mulheres. As mulheres empresárias eram mais propensas a dar prioridade à sustentabilidade em detrimento dos objetivos econômicos empresariais do que os homens.
Do ponto de vista de equidade de gênero, as consequências para as mulheres se refletem em menores níveis de renda, dependência econômica, maior submissão a empregos precários, sobrecarga de funções pela dedicação às tarefas domésticas não remunerada ou maior participação feminina nas estatísticas de desemprego.
A soma desses fatores leva ao aumento da pobreza das mulheres e dificulta o avanço necessário nas mudanças estruturais para uma maior equidade de gênero.
Além disso, o menor número de mulheres atuando no mundo dos negócios significa menor representatividade nos espaços de regulação do empreendedorismo e tomada de decisão nas esferas politicas, econômicas e sociais. Além de permanecerem mais vulneráveis à discriminação e a situações de violência contra elas.
A mudança desse cenário envolve mudar as cognições, ou seja, os esquemas ou protótipos que as pessoas têm acerca da liderança, de forma que passem a incluir nas suas concepções de liderança a feminilidade, ou, talvez, não incluir referência a qualquer gênero no seu protótipo de líder.
O caminho é longo e começa justamente em cognitivamente perceber que nossas cognições acerca da liderança favorecem um gênero específico. O próximo passo é buscar mudar essas cognições, que em seguida, levarão a comportamentos (e decisões) diferentes. Se liderança está nos olhos de quem vê, então, parafraseando Lulu Santos, quem vê precisa considerar justa toda forma (e gênero) de liderar.
REFERÊNCIAS
EAGLY, Alice H.; KARAU, Steven J., Role Congruity Theory of Prejudice Toward Female Leaders , Psychological Review – Vol. 109 – 2002
GEM (Global Entrepreneurship Monitor) (2023). Global Entrepreneurship Monitor 2022/2023 Global Report: Adapting to a “New Normal”. London: GEM.
GEM (Global Entrepreneurship Monitor) (2023). Global Entrepreneurship Monitor 2022/23 Women’s Entrepreneurship Report
- Olivera, M. G. Podcameni, M. C. Lustosa e L. Graça, “A dimensão de gênero no Big Push para a Sustentabilidade no Brasil: as mulheres no contexto da transformação social e ecológica da economia brasileira”, Documentos de Projetos (LC/TS.2021/6; LC/BRS/TS.2021/1), Santiago e São Paulo, Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe e Fundação Friedrich Ebert Stiftung, 2021.
OFFERMANN, L. R., & COATS, M. R. (2018). Implicit theories of leadership: Stability and change over two decades. The Leadership Quarterly, 29(4), 513–522. https://doi.org/10.1016/j.leaqua.2017.12.003
ZHAO, Eric Yanfei; YANG, Ling: Women Hold Up Half the Sky? Informal Institutions, Entrepreneurial Decisions, and Gender Gap in Venture Performance – Entrepreneurship Theory and Practice – 2020.
Por Liliane Furtado, mestre e doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Leciona as disciplinas Comportamento Organizacional, Tópicos atuais em Liderança e Metodologia de Pesquisa nos cursos Graduação e Mestrado do Instituto COPPEAD de Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde desenvolve pesquisas sobre liderança, diversidade e inclusão. É também bolsista Jovem Cientista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ. Atua como palestrante na área de liderança em eventos científicos e empresariais.
Com a participação das pesquisadoras:
Mariana Ribeiro Timotheo, Mestre e Doutoranda em Administração e Pesquisadora no Grupo de Estudos em Liderança Pós-Heroica (GELPH) do COPPEAD/UFRJ.
Silvania Godoi, Mestre em Finanças Comportamentais e Doutoranda em Administração. Pesquisadora no Grupo de Estudos em Liderança Pós-Heroica (GELPH) do COPPEAD/UFRJ.
Ouça o episódio 143 do RH Pra Você Cast, “Inclusão 50+, bom para o presente e para o futuro (de todos nós)“. Como você se enxerga daqui a cinco ou dez anos? O questionamento, que já deve ter sido feito a muitos de vocês durante algum processo seletivo ao longo da carreira, nem sempre traz consigo uma resposta fácil. Especialmente para um público que, diante de tantos estereótipos e preconceitos, sequer sabe como será o dia de amanhã em sua vida profissional. A cada nova geração que entra no mercado, uma anterior se vê diante do dilema de ficar para trás e ver cada vez menos portas se abrirem.
O panorama, todavia, não só precisa como deve ser mudado. Pesquisas revelam que o tão falado “choque geracional” é extremamente benéfico não só a profissionais de todas as idades, mas também às empresas. E, afinal, se não olharmos para o público 50+ com atenção, como será quando chegar a nossa vez de lutar por espaço com os mais jovens? Para falar sobre as vantagens de mesclar gerações e como desenvolver mecanismos de inclusão, o RH Pra Você Cast traz Mórris Litvak, Fundador e CEO da Maturi. Confira o papo clicando no app abaixo:
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