Em um mundo que, por dois anos, teve os seus passos ditados por uma pandemia, inúmeros especialistas em mercado e estudos sobre a nova realidade corporativa, quase em total unanimidade, deixavam bem claro que o home office e o trabalho híbrido chegaram para ficar e para revolucionar o trabalho como o conhecemos. Eles eram o presente, o futuro e um caminho que parecia naturalmente sem volta.
Todavia, conforme o globo se recuperou da grave crise de saúde, o que se viu foi que velhos hábitos não foram deixados para trás no mercado – ao menos por quem dita o ritmo do jogo. Enquanto colaboradores deixam seus empregos para buscar oportunidades remotas, gestores se esforçam para o trabalho presencial voltar a ser o grande protagonista. Com isso, surgiu o “Great Mismatch”, que pode ser traduzido, ao pé da letra, como Grande Desencontro ou Grande Incompatibilidade.
The Great Mismatch
De acordo com levantamento feito pela consultoria McKinsey, 87% dos trabalhadores nos Estados Unidos desejam flexibilidade, porém 50% dos empregadores querem que seus colaboradores voltem para os escritórios. Além disso, segundo outro estudo, desta vez do LinkedIn, ao mesmo tempo que metade dos candidatos da plataforma se candidatam a vagas híbridas ou remotas, os anúncios online para essas posições estão em queda.
Na visão do francês Denis Pennel, Diretor da World Employment Confederation (WEC), mais ponto que ilustra a ascensão do “The Great Mismatch” é o fato de que muitos profissionais vêm abandonado o mercado conforme percebem que sua nova maneira de se relacionar com o trabalho é incompatível com o desejo dos gestores em construir o futuro com dinâmicas do passado.
“Como resultado, muitos países enfrentam um alto nível de escassez de habilidades, especialmente nos setores de construção, manufatura, lazer, tecnologia, entre outras. Os empregadores estão lutando para recrutar talentos e reter seus melhores talentos. 69% das organizações em todo o mundo relatam problemas com essa escassez e dificuldades para contratar [segundo o ManpowerGroup Talent Shortage Study, publicado em fevereiro do ano passado]”, diz. Estima-se que nos EUA há mais de 10,1 milhões de vagas de trabalho abertas, com parte delas não sendo preenchidas porque os gestores não conseguem captar talentos.
Lançado em julho deste ano, o Índice de Confiança Robert Half revelou em sua 24ª edição que 76% dos entrevistados consideram como o modelo ideal de trabalho o híbrido, enquanto 18% indicam o home office integral e somente 6% o modelo presencial full time.
A pesquisa mostra que o retorno 100% presencial levaria 38% dos profissionais empregados a buscar um novo emprego. Não à toa, 39% dos recrutadores participantes do levantamento já estão vendo colaboradores buscarem um novo trabalho depois que a empresa decidiu pelo retorno presencial e 23% têm o receio de que isso possa acontecer no futuro.
“Com exceção daqueles setores que só podem atuar de modo presencial, como parte da área da saúde ou do varejo, por exemplo, nos demais, os trabalhadores anseiam por formatos flexíveis. Assim como o mundo, as pessoas mudam e o trabalho também. A modalidade de trabalho tornou-se um fator decisivo, capaz de impulsionar pedidos de demissão e mudanças de emprego em prol de mais bem-estar, qualidade de vida e saúde mental. Nota-se que os profissionais também valorizam o contato e a interação, pois preferem o modelo híbrido, não o 100% remoto”, destaca Lucas Nogueira, diretor regional da Robert Half.
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Como fechar a conta?
Grandes empresas dos EUA têm adotado iniciativas e oferecido benefícios, como almoço gratuito, café sofisticado e auxílio transporte, para incentivar os colaboradores a voltarem ao escritório. No entanto, a taxa de adesão ainda fica abaixo do esperado, com menos de 50% dos funcionários retornando.
A gigante de tecnologia Salesforce comprometeu-se a doar US$10 para instituições de caridade a cada dia em que os funcionários trabalharem presencialmente, em uma tentativa de mobilização. O Google, conhecido por seus benefícios como massagens, lavanderia e áreas de lazer, também está pressionando os colaboradores a voltarem ao escritório.
Há também casos mais “diretos”, como o do X, antigo Twitter. O CEO da plataforma, Elon Musk, causou polêmica após colaboradores alegarem que receberão e-mails com ultimatos, nos quais, por exemplo, era dito que quem não voltasse ao presencial não precisava mais fazer parte da companhia.
Pennel salienta que tal cenário pode ser encarado como um dos grandes desafios atuais do RH. Para ele, o setor, à medida que se torna cada vez mais estratégico dentro das organizações – o que aumenta suas responsabilidades e a exigência na participação na tomada de decisões importantes –, tem a missão de desenvolver acordos e mecanismos de trabalho que atendam as expectativas tanto dos gestores quanto dos colaboradores.
“Um ponto sobre o qual podemos ter certeza é que necessitamos de uma ‘abordagem em tamanho único’ para a relação entre empregador e empregado. Os empregadores terão que se adaptar para lidar com as – não tão – novas expectativas dos trabalhadores”, pontua o especialista.
Entre algumas ações que podem ser tomadas, o executivo recomenda que os empregados estejam mais abertos para ouvir feedbacks dos colaboradores em relação ao quanto a flexibilidade pode melhorar a produtividade, a saúde e também o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. Do mesmo modo, RHs e gestores podem tornar o modelo a distância menos “incômodo” com a realização de treinamentos e a criação de diretrizes que deixem bem claras o que é esperado do colaborador.
Um relatório do ZipRecruiter identificou que profissionais entre 18 e 34 anos estariam dispostos a diminuir seus salários entre 16% a 18% para poder trabalhar remotamente. Pennel recomenda que, em vez de seguir com o corte, as organizações sejam inovadoras na abordagem, utilizando dados para medir produtividade, buscando ferramentas para facilitar a comunicação a distância e avaliando em quais situações o 100% presencial é realmente necessário.
Por Bruno Piai