O mercado de criptomoedas não vive o seu melhor momento. De acordo com análise realizada pelo portal Seu Dinheiro, a oitava semana consecutiva de queda do Bitcoin (BTC) garante que o mercado de moedas virtuais vive a sua pior fase desde 2014 – o que justifica US$ 600 milhões em criptomoedas terem sido liquidados somente na última quinta-feira e as projeções cada vez mais baixas em torno da valorização de algumas delas.

Contudo, diante da dimensão que o mercado das criptomoedas tomou nos últimos anos, a aposta financeira virtual caiu nas graças de muitas pessoas. Um levantamento de março deste ano da Sherlock Communications, por exemplo, identificou que 25% dos brasileiros planejam investir nas “criptos” nos próximos 12 meses. Em meio ao hype, as moedas começam a se fortalecer não apenas como investimentos e ferramentas de compra, mas também como meios de remuneração salarial.

Em alguns países a tendência de pagar salários com o uso de criptomoedas já é uma realidade. Na Argentina, por exemplo, empresas começaram a adotar o mecanismo para pagar até 20% da remuneração dos colaboradores. Com isso, o país sul-americano se tornou a nação líder em pagamentos dessa forma, segundo a Deel, startup americana de gestão de folha de pagamento.

Empresas relacionadas a criptomoedas, como Binance ou Bybit, pagam parcialmente aos funcionários com criptomoedas. Por exemplo, Bybit é confiável, então a maioria dos funcionários dessa empresa não tem problemas em receber algum pagamento na forma de criptomoedas.

No Brasil, por sua vez, há complexidades envolvidas para que a “moda” chegue por aqui. Embora haja projetos tramitando pelo legislativo para regularizar pagamentos com criptomoedas, há fatores envolvidos que vão além da questão legal. É seguro? É prático? É vantajoso? Vamos entender mais:

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Validade jurídica

Embora falar sobre criptomoedas não seja, necessariamente, um assunto novo, somente em fevereiro deste ano a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) aprovou um projeto para sua regulação. Em abril, em votação simbólica, o Senado Federal aprovou o PL 3.825/2019, de autoria do senador Flávio Arns (Podemos/PR) e de relatoria do senador Irajá (PSD/TO), cujo texto, entre outras coisas, visa combater crimes relacionados às criptos e oferecer maior segurança a quem nelas investe. Ainda assim, quando o assunto é pagamento com cripto, algumas dúvidas ainda permeiam.

De acordo com Gianlucca Murari, advogado do escritório Dosso Toledo Advogados, a legislação brasileira não proíbe que as moedas digitais sejam utilizadas como forma de pagamento. “É permitido realizar transações entre bens de diferentes naturezas, ou seja, a ‘permuta’ entre um determinado bem e uma criptomoeda, desde que pactuado expressamente e clausulado por meio de um contrato, é válida”.

Todavia, o advogado Murilo Aires, do mesmo escritório, pontua que ainda é necessário ter cuidado quando a remuneração com criptomoedas está na pauta do empregador, especialmente pelo fato de ainda não existir uma regulação específica em relação à prática, como é o caso da Argentina.

“É importante relembrar que sempre que falamos de salário ou remuneração, estamos falando, juridicamente, de um vínculo empregatício, ou seja, de uma relação contratual submetida às regras da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Nesse contexto, a regra da CLT é que o salário deve ser pago em moeda corrente do país (no caso, o real), sendo que o pagamento de outra forma enseja considerar o pagamento como não feito. Assim, nessas condições, o pagamento do salário em moedas virtuais cria, no mínimo, um altíssimo risco ao empregador de não ser reconhecido como realizado o pagamento já feito”, diz.

Criptomoedas como forma de pagamento

Aires explica que existem projetos de lei que têm o propósito de alterar essa condição, como é o caso do PL 3.908/202, em trâmite pela Câmara dos Deputados. A proposta é incluir a opção ao trabalhador de receber parte da remuneração em criptomoedas. No entanto, enquanto não há a aprovação, a advogada Letícia Trevizoli, também do Dosso Toledo Advogados, esclarece que a mesma cautela deve ser tomada para pagamentos que vão além dos salários aos colaboradores, como as férias.

“As férias, horas extras, 13º salário e afins são recebimentos que carregam a natureza de remuneração, incidindo a regra da CLT relativa à necessidade de pagamento em moeda crescente do país. Eventuais bônus, a depender de sua origem e natureza, poderiam, a princípio, aceitar o pagamento em moedas digitais, assim como eventuais benefícios, como vale-alimentação, na ocasião de uma grande aceitação do mercado alimentício, por exemplo.”

Ainda segundo Letícia, por mais que alguns países já estejam avançando com diretrizes para que colaboradores sejam pagos com criptomoedas, o Brasil ainda tem um caminho a ser percorrido, uma vez que, segundo ela, “[as criptomoedas] representam um desafio ao direito na definição de sua própria natureza e efeitos, de forma que, na prática, ainda não parecem representar uma opção plausível e minimamente segura antes de uma melhor regulação, sobretudo diante da volatilidade e da rigidez das normas trabalhistas”.

Ao contrário do dinheiro regular — emitido por governos —, as criptomoedas são lançadas por agentes privados e negociadas exclusivamente na internet. Para utilização é preciso considerar aspectos jurídicos como a data base para conversão do valor devido para o cripto ativo, pois uma característica dessas moedas é a alta volatilidade e a reatividade em relação às notícias de mercado. No momento da negociação, portanto, a dívida pode ter um determinado valor e no pagamento pode ter outro, o que poderia descaracterizar qualquer desconto.

“Além disso, é importante atentar para a segurança, do ponto de vista judicial e prático. Juridicamente, é importante obter um termo de quitação, formalizar o pagamento do débito com criptomoedas por meio de um instrumento de transação e ter o acompanhamento de profissionais do direito que atuem com meio digital, especialmente aqueles especializados em cryptocurrency”, salienta Murari.

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Pagar e receber com moedas digitais são, de fato, ações vantajosas?

Para Francisley Valdevino da Silva, CEO da Intergalaxy SA, empresa especializada em tecnologia blockchain, “o criptomercado tem conseguido revolucionar a forma como as pessoas lidam com o seu dinheiro”. O executivo esclarece que o prosseguimento de projetos de lei que favorecem a remuneração por meio de moedas digitais tende a ser vantajoso tanto para as empresas quanto para os colaboradores.

Uma das principais características das criptomoedas é justamente a descentralização. Por não estarem submetidas a nenhum governo em específico, podem ser aceitas em qualquer país. “Geralmente baseadas no valor do dólar, elas têm maior alcance que a moeda estadunidense sem deixar de apresentar valor real em transações”, aponta Silva.

Para os funcionários, o pagamento em moedas digitais tem vantagens como o acesso em qualquer parte do mundo e facilidade de compras internacionais, por exemplo. “Isso também favorece o investimento, caso o empregado queira investir, sem precisar comprar criptoativos e tendo uma entrada regular de valores. O recebimento de parte do salário ainda em real brasileiro mantém a economia nacional em alta de forma responsável e auxilia funcionários a administrar melhor as duas moedas para sua economia familiar”, complementa o CEO.

Segundo o consultor financeiro José Martinez, porém, antes de pensar nas criptomoedas como fonte de pagamento, é preciso realizar um processo de educação financeira. “Pagar com criptomoedas pode, sim, ser uma boa ideia, mas para quem? Hoje, somente um nicho muito específico seria, de fato, beneficiado. Há pessoas que não têm conhecimentos sobre investimentos e sequer sabem o que são as criptomoedas. E essas pessoas não podem ser ignoradas, elas devem ser educadas sobre o assunto para ter discernimento o suficiente para decidir se querem ou não ter parte da sua remuneração assim”.

De acordo com estudo encomendado pela consultoria financeira DeVere, a tendência deve ganhar força com as novas gerações. O relatório mostra que mais de 30% dos millennials e metade da geração Z têm o interesse em receber pelo menos 50% de seu salário pago em Bitcoin ou outra moeda.

Geração Z e millennials gostariam de receber em criptomoedas

“Essa pesquisa reforça não só uma tendência, mas a necessidade das empresas terem um trabalho mais próximo de consultoria financeira. Criptomoedas estão em alta, mas enquanto algumas crescem exponencialmente, outras rapidamente se desvalorizam. E a quantidade delas só aumenta. É preciso ter pessoas que conhecem do assunto para orientar empregador e empregado e deixá-los cientes de todos os riscos envolvidos”, elucida Martinez.

Além disso, é importante o acompanhamento por profissionais qualificados, especialmente equipes multidisciplinares compostas por especialistas, como advogados do direito digital, do direito tributário e empresarial, economistas, engenheiros e cientistas da informação e dados para que todos os aspectos sejam levados em consideração para a tomada de decisão mais segura e lucrativa.

“Do ponto de vista prático, é essencial obter uma hard wallet (aparelho que confirma fisicamente todas as transações realizadas no mundo digital), guardar em segurança as senhas da soft wallet (carteira eletrônica) e realizar as transações por intermédio de grandes corretoras de nome e de segurança reconhecidos no mercado”, finaliza Gianlucca Murari.

Por Bruno Piai