Há pouco mais de dois anos, o Brasil e o mundo encaram de frente um dos cenários mais complexos enfrentados no atual século, a pandemia da Covid-19. A chegada do vírus não somente impactou fortemente o âmbito social, como também balançou as estruturas e promoveu mudanças no mundo do trabalho. Entre as mais significativas estão a adoção mais frequente ao home office e a introdução do modelo híbrido como parte da rotina de muitas organizações.

Durante o período pandêmico, especialistas buscaram prever e compreender o que, de fato, chegou para ficar no “pós-pandemia”. Por mais que ainda existam registros de infecções e internações em decorrência da Covid-19 – – a média nacional dos últimos sete dias é de 99 mortes diárias no Brasil, enquanto ao todo, no país, ocorreram mais de 662 mil mortes por Covid-19 durante toda a pandemia -, no último domingo (17), o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, anunciou o fim do estado de emergência devido à pandemia, que será decretado nos próximos dias. Anteriormente, todos os estados brasileiros já haviam decretado o fim da obrigatoriedade do uso de máscaras de proteção. Será, portanto, que chegou o momento de entrar de vez no pós-pandemia? As tendências previstas, como o crescimento do modelo híbrido, devem mesmo ter força? Vamos entender melhor.

Modelo híbrido chegou mesmo para ficar?

De acordo com a 18ª edição do Índice de Confiança Robert Half (ICRH), o modelo híbrido de trabalho é o preferível para 48% das empresas. A sondagem leva em conta as respostas de 387 recrutadores, coletadas entre 3 e 30 de novembro, e revela ainda que 38% das empresas devem retornar ao modelo 100% presencial, enquanto apenas 3% devem permanecer no modelo 100% home office. Na ocasião, 11% dos entrevistados afirmaram ainda não ter o modelo definido para 2022. Em junho, esse número era de 58,1%.

“É inegável a mudança de paradigma dos últimos dois anos e a evolução das empresas nesse sentido. Antes da pandemia, eram poucas as empresas que contavam com políticas estruturadas de trabalho remoto, e as que o praticavam ofereciam como um benefício. O cenário que temos hoje, no entanto, é o do trabalho flexível como um modelo de contratação que visa à manutenção da produtividade e à valorização das vivências pessoais e profissionais, dentro e fora do escritório”, afirma Fernando Mantovani, diretor-geral da Robert Half para a América do Sul.

Ainda assim, mergulhar no hibridismo não é um processo tão simples. Além do necessário trabalho de estruturação para que o colaborador tenha as devidas condições de exercer o seu trabalho fora do escritório, é igualmente importante avaliar seu índice de satisfação. Será, por exemplo, que o funcionário que já compreendeu que pode ser produtivo em casa se sentirá motivado a encarar a rotina de trânsito e outros afins para trabalhar do escritório, mesmo que não sejam todos os dias da semana?

Recente levantamento da FIA Business School ajuda a responder a questão. O estudo revela que 73% dos profissionais preferem trabalhar home office, especialmente por conta da flexibilidade que o modelo oferece. Pesquisas do Centro de Pesquisas Pew, dos Estados Unidos, indicam, inclusive, que futuramente o horário de trabalho estipulado das 9h às 17h deve ser flexibilizado de maneira concreta.

Dois anos de pandemia

Segundo, André Fischer, coordenador do Programa de Estudos em Gestão de Pessoas (Progep) da FIA Business School, o horário flexível no home office nem sempre é colocado em prática, mas a aceitação das pessoas está em constante mudança. “Há ainda muito o que se alterar nessa nova política de teletrabalho. Com nossa pesquisa percebemos um aperfeiçoamento das condições do ambiente de trabalho em casa, melhoria do gerenciamento do tempo das atividades, a manutenção de altos índices de comprometimento organizacional e um grande interesse dos trabalhadores de que esta prática continue sendo adotada de modo mais amplo pelas organizações”, explica.

Outro ponto a se destacar numa possível flexibilidade, seria a forma mais satisfatória de gerenciar o tempo. Cerca de 72% dos respondentes estão utilizando o tempo economizado com deslocamento para atividades pessoais e sentem que é possível conciliar trabalho com atividades domésticas (eram 67% na amostra de 2020).

Para o especialista em Gestão de Pessoas e Recrutamento & Seleção, César Moura, o grande desafio em relação ao trabalho híbrido estará no equilíbrio da demanda. Moura recorda que, segundo estudos feitos ao longo da pandemia, o desejo pelo retorno ao trabalho presencial parte mais dos líderes e gestores do que dos colaboradores. A Slack, em relatório, traz números que corroboram a afirmação. 44% dos chefes gostariam de trabalhar integralmente no escritório, enquanto somente 17% dos funcionários compartilham da mesma vontade. Em relação ao hibridismo, 75% dos gestores planejam que três dias da semana, ao menos, envolvam o deslocamento ao negócio, enquanto a porcentagem de funcionários que têm a mesma visão é de 34%.

“O fator motivacional é muito importante e as empresas precisam estar preparadas para lidar com isso. Não basta se prender em argumentos como ‘o contato humano é positivo para o time se entrosar melhor’. É preciso ter uma justificativa concreta para tirar o funcionário de seu lar, onde ele consegue desempenhar bem seu trabalho, para fazê-lo se deslocar ao escritório. Dentro da flexibilização, talvez dar a opção do colaborador ir ou não ao escritório quando achar melhor funcione mais do que obrigá-lo a ir ‘x’ dias por semana”, salienta Moura.

O especialista esclarece, no entanto, que o hibridismo não deve ser enxergado como uma “moda” e as organizações devem se atentar para não perderem talentos. “A flexibilização, hoje, é um dos chamarizes para um profissional decidir ou não se aceita uma vaga. É obviamente compreensível que nem todo tipo de negócio pode oferecer o trabalho a distância em seu pacote, mas as áreas que podem devem, minimamente, ter tal flexibilidade como algo em seu horizonte. A ida ao escritório, mais do que nunca, precisa fazer sentido”.

Em entrevista ao Valor Econômico, Ethan Bernstein, professor de comportamento organizacional da Harvard Business School (HBS), deixa claro que as empresas tendem a enfrentar problemas se apresentarem resistência para ouvir as pessoas. Para ele, “existe uma presunção de que o híbrido vai funcionar para todos”, porém, a divisão de trabalho entre presencial e a distância precisa ter clareza e definição nas políticas de avaliação, promoção e desempenho.

Veja mais: Trabalho híbrido: como gerenciar e liderar o time nesta nova hora?

“Existe um longo histórico de pesquisas em psicologia que mostram que os seres humanos não são particularmente bons em lembrar as coisas ruins. Portanto, estamos famintos pelas conversas no refeitório. Esquecemos o fato que tínhamos que sentir o cheiro da comida o dia todo que, por algum motivo, era particularmente fedida no escritório. Quando voltarmos, as pessoas se lembrarão do lado bom, mas também do ruim. Haverá tensões entre os funcionários, tendo que descobrir o que é híbrido para eles. Esse cenário será muito difícil para organizações onde existia uma política única de local de trabalho”, disse o educador ao Valor.

Vale destacar também, segundo pesquisa da própria HBS, que o trabalho híbrido ideal deve ser com um ou dois dias no escritório e não mais do que isso. Todavia, ainda há uma discrepância entre expectativa e realidade, uma vez que nem todos os gestores confiam na capacidade de seu time a distância.

“Acredito no poder da adaptação, atitude necessária para os tempos atuais. Ainda há vários questionamentos se é prudente manter o home office, o modelo híbrido ou presencial 100% nas empresas. Como sempre, o extremismo nunca trouxe resultados positivos. Dessa forma, cabe à área de RH e às lideranças refletirem quem pode estar em cada um dos modelos e praticar a escuta ativa, questionando os colaboradores e construindo isso juntos, de forma cocriativa, se não quiserem perder seus melhores talentos. Vale lembrar que hoje, tal qual a empresa escolhe quem ela quer trabalhando no seu time, o colaborador também opta em qual organização quer atuar”, elucida David Braga, CEO da Prime Talent Executive Search.

Prioridades na Gestão de Pessoas

Se em 2021 as empresas foram obrigadas a definir formatos para além da pandemia, tendo em vista um cenário de maior estabilidade, retomada das atividades e intensa digitalização decorrente das transformações no mercado de trabalho e na sociedade, o ano de 2022 vem sendo encarado como uma possibilidade de respiro.

“Mesmo diante do aparecimento de novas variantes do vírus e outros eventos negativos, já podemos falar de uma situação menos incerta com relação ao mercado e sobre as tendências que devem moldar as relações daqui para a frente”, acredita Ruy Shiozawa, CEO do Great Place to Work. E, mesmo em um período tão desafiador e cheio de incertezas, o otimismo prevalece na maioria das empresas (80%), assim como nos anos anteriores (76% em 2020; 79% em 2021), segundo o Relatório de Tendências de Gestão de Pessoas em 2022, elaborado pelo GPTW.

Pós-pandemia será assunto no RH TopTalks

De acordo com o estudo, para 42,6% dos participantes, o desenvolvimento/capacitação de lideranças é o principal foco para garantir a construção de ambientes de trabalho emocionalmente saudáveis e o alcance de resultados estratégicos. Ao todo, 94,3% dos entrevistados planejam investir na preparação dos líderes.

Além da qualificação das lideranças, segundo a análise da pesquisa a pandemia deixou outros três importantes legados para a Gestão de Pessoas: o redesenho das organizações, com a adesão de novos formatos ou jornadas de trabalhos, que provocaram mudanças na concessão de benefícios aos funcionários; foco na saúde mental, não somente em ambientes corporativos, mas como um todo; e a valorização da comunicação interna das organizações.

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Em relação ao último tópico, 97,2% dos participantes consideram a saúde emocional um ponto de extrema relevância para a gestão de pessoas empresarial. Apesar dos avanços no tema causados pela pandemia, muitas mudanças ainda são necessárias para que as empresas se tornem, de fato, ambientes emocionalmente saudáveis. Um exemplo disso é que, em pesquisa realizada em 2021 em parceria do GPTW, Youleader, Jungle e Youclub, 64% das pessoas informaram que as empresas em que trabalham não oferecem benefícios de saúde mental para colaboradores.

Já a respeito da comunicação interna, 49,2% a apontam como um dos principais temas a serem trabalhados em 2022. A adoção dos formatos híbrido, remoto e flexível continua sendo um grande desafio para as empresas, que precisam encontrar as tecnologias adequadas para manter o fluxo de informações e encontrar os processos ideais para que todas as pessoas da equipe se sintam igualmente contempladas na troca de informações organizacionais.

“O desafio agora é manter todos os colaboradores focados na missão e nos valores de cada empresa em ambientes diversos, com múltiplos pontos de contato e, muitas vezes, tendo que recorrer à comunicação assíncrona. O mundo corporativo está se empenhando em lidar com essas questões, após experimentações desafiadoras, mas transformadoras e essenciais para o futuro do trabalho”, finaliza Ruy.

Por Bruno Piai