Em maio deste ano, publicamos aqui no RH Pra Você uma lista de sete comportamentos que o RH deve evitar durante uma entrevista de emprego. Entre os itens, elencados por Nathália Paes, executiva de negócios do InfoJobs, estão perguntas que não devem ser realizadas, pois são irrelevantes à vaga e/ou ultrapassam o limite profissional, tais como questionamentos sobre orientação sexual, religião, vida social e afins.

No entanto, apesar de, recentemente, parecer haver maior concordância por parte dos RHs em amenizar perguntas de cunho pessoal – afinal, redes como o LinkedIn contam com inúmeros relatos de profissionais que criticam entrevistas ‘mais pessoais do que profissionais’ -, nem sempre os diálogos da seleção são conduzidos somente por questões que envolvam as habilidades técnicas e comportamentais dos candidatos.

Não é incomum que recrutadores busquem informações que fogem do escopo da oportunidade ofertada. O ponto é: qual é o limite para estas perguntas? Há questões além do currículo que um candidato é “obrigado” a responder e informações que ele deve compartilhar mesmo sem ser perguntado? Para tirar as dúvidas, conversamos com o advogado André Dias Andrade, sócio do escritório Dias Andrade & Advogados Associados. Confira:

RH Pra Você: Há alguma informação que não esteja ligada às atribuições da vaga em aberto que o candidato deve passar ao recrutador?

Dias Andrade: Em verdade, estamos diante de dois princípios constitucionais, ambos classificados como fundamentais: de um lado o direito à informação (art. 5º, XIV, da CF) e de outro o direito à privacidade, à intimidade (art. 5º, X, da CF). Ou seja, em uma entrevista temos de um lado um agente com direito de acesso à informação e de outro o candidato com direito de ter sua privacidade e intimidade preservadas.

A regra geral é de que não existe hierarquia entre princípios constitucionais fundamentais, e quando colidem entre si, como na questão proposta, a solução se dá por meio da ponderação no caso concreto. O problema é definir o limite, ou seja, até onde vai o direito de informação e quando começa o direito à privacidade ou intimidade. É essa linha de corte que vai determinar o que pode ser solicitado pelo entrevistador e o que não pode, é o que vai configurar um abuso, e, portanto, uma infração legal passível de indenização, ou não.

Entrevista de emprego

Até a elaboração da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), não havia qualquer norte legislativo nesse sentido, e quando o conflito era levado ao judiciário, cabia aos julgadores a sinalização do limite, sempre adequado ao caso concreto. Com a LGPD há, finalmente, uma sinalização legislativa sobre o tema, mas a contribuição foi muito modesta, pois trouxe uma regulamentação aberta, permanecendo a questão ainda muito subjetiva. Em termos gerais, a lei disse que o controlador de dados (pessoa que busca a informação) pode exigir informações desde que sejam necessárias para o desenvolvimento do relacionamento. 

Veja mais: Como não deixar a LGPD na gaveta

E, aqui nesse ponto, cabe um outro esclarecimento. A LGPD não proíbe o tratamento de dados ou a colheita de informações. O que ela busca é coibir o tratamento abusivo de dados, que se traduz na realidade com a falta de consentimento do titular, por exemplo, nas situações mais simples e cotidianas, ou com a colheita de informações que são extremamente desnecessárias e não encontram um mínimo de pertinência para o relacionamento desenvolvido pelas partes. Portanto, pode o recrutador exigir informações, desde que tenha pertinência e desde que haja um motivo não repudiado pelo ordenamento jurídico.

RH Pra Você: Então, o conceito que envolve a abusividade é interpretativo?

Dias Andrade: A abusividade estará intimamente ligada, sempre, ao contexto em que a informação é obtida e utilizada. Vamos a um exemplo: a informação sobre a existência de ações em nome de determinada pessoa é pública e qualquer cidadão que se dirigir ao cartório distribuidor, consegue ter acesso.

Contudo, se essas informações forem usadas por plataformas de proteção ao crédito, por exemplo, para traçar um perfil de avaliação de cadastro, tem-se a utilização indevida de informação pública, pois a simples existência de ações não significa dizer que a pessoa é uma boa ou má pagadora. A exigência de informações em uma entrevista de emprego segue a mesma lógica.

RH Pra Você: Um ponto que sempre gerou certa polêmica em processos seletivos é a exigência dos antecedentes criminais. Ele pode ser solicitado? 

Dias Andrade: Há um tempo acompanhamos um caso de uma empresa que exigia antecedentes criminais no processo de seleção e veio a pergunta: posso ou não fazer essa exigência? A resposta é: depende.

Existem muitos julgados sobre o assunto e muita divergência jurisprudencial, mas predominam decisões no sentido de que a empresa somente poderá fazer tal exigência se a atividade por ela desenvolvida justificar. Como a empresa trabalhava com segurança e transporte de valores, tendo inclusive que entregar armas de fogo aos colaboradores, houve o entendimento de que existia sim a necessidade de uma pesquisa mais aprofundada sobre o passado da pessoa, de modo a prevenir, sobretudo, responsabilidade futura por parte da empresa em relação à conduta dos seus empregados armados. 

Assim, é possível fazer qualquer pergunta, desde que tenha pertinência com a atividade a ser desenvolvida. E isto pode ser esclarecido pelo recrutador ao entrevistado, como forma de justificar a necessidade da informação e também de permitir que a pessoa decida fornecer ou não o dado solicitado.

RH Pra Você: Outro fator que costuma gerar incômodo diz respeito a informações familiares, mais especificamente sobre filhos. Há casos de empresas que contratam gestantes, mas não são informadas a respeito da gravidez e pouco tempo depois ficam sem poder contar com o serviço de sua colaboradora – vale destacar que, em muitos casos, a mulher também não está ciente da gravidez. Perguntar sobre gestação ou se a mulher deseja ter filhos – questionamento que costuma causar muitas reclamações – é pertinente?

Dias Andrade: O planejamento familiar, por exemplo, pode ser essencial para o preenchimento de determinada vaga. Afinal a informação sobre ter ou não filhos pode ter relevância para ambos os lados. Consideremos, por exemplo, uma vaga que exige disponibilidade para viagens constantes, com ausências prolongadas. É de interesse do recrutador saber se o planejamento familiar interferirá nessa disponibilidade e certamente também é do interesse do entrevistado conhecer as exigências que a vaga impõe para, com isto, saber se de fato lhe interessa. O que não pode ocorrer é a colheita injustificada da informação, que poderá ser considerada com finalidade puramente discriminatória.

Numa entrevista deve-se falar sobre gravidez

Nesse mesmo sentido é a questão acerca da candidata ciente de seu estado gravídico no momento da seleção. Não há qualquer lei ou norma que obrigue a candidata a informar sobre a gravidez no momento da entrevista, de modo que se optar por omitir a informação, está assegurada pelo princípio da legalidade contido na Constituição Federal. Mas o caso concreto deve ser ponderado à luz do bom senso e também do princípio da boa-fé.

RH Pra Você: Eventuais doenças, como HIV, asma, depressão, entre outras devem ser informados no processo seletivo ou o candidato pode/deve compartilhar informações de saúde somente a um médico do trabalho?

Dias Andrade: Nem mesmo o médico tem autonomia deliberativa sobre as informações a respeito do estado de saúde de determinado indivíduo, pois o código de ética médica é claro ao dizer que os dados contidos no prontuário pertencem à pessoa e são protegidos pelo sigilo. 

Com efeito, ao empregador cabe apenas saber se o empregado está apto ou não para o exercício da função, o que será avaliado pelo médico do trabalho de acordo com os descritivos das atividades e necessidades apresentadas pela empresa. O motivo pelo qual o médico do trabalho atesta a aptidão ou a inaptidão é protegido pelo sigilo e cabe apenas ao candidato a decisão de compartilhar com alguém ou não. E aqui cabe ressaltar a importância do exame médico admissional de aptidão para o trabalho, que na prática muitas vezes é tratado apenas como uma formalidade a ser atendida. Em verdade, o exame médico de aptidão para o trabalho serve para proteger as partes. 

Veja mais: A importância de cuidar da saúde do colaborador

Identificada a inaptidão para o exercício da atividade para a qual o candidato está sendo avaliado, obsta a contratação. Por outro lado, se relegado o exame, se feito de qualquer jeito, e o candidato vir a ser contratado mesmo sendo portador de uma doença que não seja compatível com o exercício da função e alguma ocorrência surgir no decorrer da execução das atividades, a empresa passa a ser responsável pelo evento, ainda que não tivesse conhecimento da existência da doença. 

Vamos supor que o candidato tenha algum tipo de LER/DORT e tal situação não tenha sido identificada no exame admissional e a empresa venha a alocar o empregado em função que resulte no agravamento da doença, devido a continuidade do exercício dos movimentos que geraram a moléstia. Nessa situação, a empresa seria inteiramente responsável pelo agravamento. Outro exemplo de falha grave é o exame de aptidão para o exercício da atividade de motorista que supostamente não identifica problemas visuais, impeditivos ao exercício da função. A empresa, nesse caso, seria inteiramente responsável por danos causados ao trabalhador, aos passageiros, usuários e pedestres.

A forma de se evitar tais transtornos é por meio dos exames médicos de aptidão que devem ser realizados no início e no decorrer da vigência contratual e dentro dos períodos trazidos pelas NR’s expedidas pelo Ministério do Trabalho. Portanto, o candidato não tem obrigação nenhuma de compartilhar problemas de saúde na entrevista, mas deverá se submeter ao médico do trabalho para que possa se atestar e constatar a aptidão ou não para o exercício da atividade para a qual está sendo contratado.

RH Pra Você: E se, somente após todo o processo de admissão for realizado, a empresa identificar que há um fator de saúde que faça do exercício da atividade um fator de risco individual ao colaborador ou coletivo? 

Dias Andrade: Em caso de descoberta futura por parte da empresa, que implique em risco para o exercício da atividade, restará demonstrada a existência de falha no exame admissional, que não deve se restringir apenas a informações trazidas pelo candidato ao médico. O médico do trabalho tem o dever de fazer os exames que entender necessários, independentemente das informações trazidas, para que tenha condições de atestar e constatar a existência ou não de doenças ou moléstias que acometem a pessoa e que sejam incompatíveis com a função a ser exercida. 

Por isso, a descoberta futura de alguma doença que resulte em risco ou interferência no desempenho das funções, diagnosticada anteriormente ao processo de admissão, demonstra falha técnica grave em tal processo.

Exame admissional

Se a empresa já se encontra na situação proposta, a possibilidade de rompimento contratual dependerá de uma análise aprofundada de cada caso. Se houve falha no processo de admissão e o empregado passou a exercer determinada função que não podia, vindo a agravar o estado de saúde do colaborador, a empresa passou a ser responsável pelo agravamento e o empregado terá estabilidade até estar curado novamente. Por outro lado, se o problema de saúde foi anterior à contratação e a evolução da doença não teve relação com o trabalho desenvolvido, a empresa não terá responsabilidade alguma, podendo promover o rompimento contratual, desde que não seja doença grave.

RH Pra Você: Quando se fala em doenças, há por vezes discriminação. Como tomar o cuidado para as decisões tomadas serem exclusivamente ligadas à saúde e não a algum preconceito? 

Dias Andrade: O TST, com o objetivo de dar aplicabilidade à função social da propriedade (empresa), da dignidade da pessoa humana e evitar preconceitos, buscou evitar demissões motivadas apenas pelos “problemas” trazidos por doentes graves, com faltas sucessivas, atestados médicos, etc. editando a Súmula (443), que basicamente afirma ser presumível que qualquer demissão de portador de HIV ou de doença grave seja discriminatória. 

Contudo, existe uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 648, tramitando junto ao STF sobre o tema, que torna a matéria ainda controvertida, visto que não há nenhuma classificação que diga, de forma precisa, o que seria doença grave.

Em resumo, a situação de descoberta futura não é simples, pois a possibilidade ou não de rompimento contratual passaria pela análise de participação da empresa na moléstia desenvolvida pelo empregado, ainda que parcialmente. Haveria a necessidade de averiguação prévia para saber se a doença foi ou não desenvolvida em decorrência das funções exercidas na empresa, se foi agravada em decorrência do trabalho, ou se teria acometido o trabalhador por outro motivo.

RH Pra Você: Política é um tema que o recrutador pode abordar? Imaginando que em 2022 teremos um cenário “complexo”, para dizer o mínimo, por conta da corrida eleitoral, é natural pensar que muitas organizações busquem ter cuidados para lidar com a polarização. Esse “zelo” é aceitável – especialmente por conta das polêmicas que envolvem a vacinação – ou uma tomada de decisão que leve isso em consideração pode ser discriminatória?

Dias Andrade: Existem controvérsias e polarização sobre esses temas até nas instituições que normatizam essas questões. Essa controvérsia gera insegurança jurídica, pois não há uma orientação segura e definitiva sobre como proceder. Mas se mesmo assim somos obrigados a tomar uma decisão, um bom ponto de partida seria o princípio de que, por lei, a segurança e medicina do trabalho, é uma obrigação do empregador. Portanto, não seria zelo exigir vacinação, mas sim obrigação legal. Até porque, surgindo um empregado contaminado no ambiente de trabalho, que venha a contaminar os demais, a empresa poderia ser responsabilizada pelos casos, restando comprovado o nexo de causalidade. 

Veja mais: É prudente falar tudo o que se pensa?

Em relação à orientação política, dependeria de uma análise prévia do contexto em que ela esteja sendo exigida. Fica fácil de analisar a pertinência da informação acerca da orientação política, quando estamos entrevistando um candidato a cabo eleitoral para trabalhar dentro de um comitê de campanha, por exemplo. Contudo, fica difícil sustentar essa exigência para qualquer outro cargo não diretamente relacionado à circunstâncias eleitorais e/ou políticas. Existe briga e, como empregador, quero coibir? A proibição de assuntos ligados à política no ambiente de trabalho seria a solução mais recomendada.

Por Bruno Piai