É natural que ao investir em iniciativas de Diversidade & Inclusão, as empresas desenvolvam estratégias baseadas em estudos de mercado e que façam sentido para o negócio. Equidade de gênero e racial em cargos de liderança e gestão, combate ao etarismo, mobilização para abrir mais portas às pessoas com deficiência e trabalho de capacitação e contratação realizados em comunidades costumam ser ações vistas com certa frequência no mercado, embora algumas estejam mais avançadas do que outras em um panorama geral.

Entretanto, em meio a um cenário de trabalho tão desigual e que limita a participação de tantos públicos, existem aqueles que ainda não são tão buscados pelas organizações, seja pelas burocracias envolvidas ou pelo despreparo na promoção efetiva da inclusão. As pessoas em situação de rua exemplificam bem a questão.

No Brasil, segundo o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, estima-se que até o mês de maio mais de 184 mil pessoas não tinham um lugar para viver. Em meio às cotidianas manifestações contrárias a sua realidade, como os famoso “vai trabalhar” e “ele(a) só está na rua porque quer”, há um cenário complexo para aqueles que têm o genuíno interesse em se recolocar no mercado de trabalho de forma digna e assim dar um passo para reconstruir sua trajetória.

Antes de conseguir uma oportunidade fixa e em conformidade com leis trabalhistas, as pessoas em situação de rua se veem diante da necessidade de uma jornada de reinserção social, normalmente realizada por ONGs ou outras entidades. Soma-se a isso a boa vontade das organizações em criar programas assertivos e com o propósito real de mudar suas vidas profissionais.

Um destes programas é o Juntos para Transformar, uma iniciativa da construtora e incorporadora Cyrela em parceria com a ONG ABCP (Associação Beneficente & Comunitária do Povo). A missão do projeto é planejar e orientar a recolocação de pessoas em vulnerabilidade social ao mercado de trabalho.

Juntos para Transformar

Em três meses de programa, foram contratadas 19 pessoas no setor de obras da empresa, em São Paulo. O objetivo é que a ação possa contribuir para amenizar um dos grandes problemas sociais do país, que é o aumento constante de pessoas em situação de rua – cujo crescimento foi de 16% somente entre dezembro do ano passado e maio deste ano.

Segundo Leandra Vidal, Supervisora de Pessoas e Performance da Cyrela, a ideia do Juntos para Transformar nasceu após uma reportagem de TV. Em 2021, a companhia passou a dar mais atenção a temas voltados a, como ela define, “protagonistas da transformação”, o que trouxe ao RH formações que motivaram o setor a ampliar ações que pudessem mudar a vida das pessoas.

“Isso foi muito provocativo, comecei a observar em cada área de atuação como era possível impactar a vida das pessoas. Temos um valor muito forte que é fazer o bem. E melhor do que falar de cultura, é agir. Após assistir uma reportagem sobre pessoas em situação de rua, ela me chamou atenção porque já havia a discussão interna para trazer profissionais para uma área difícil de contratar, que era a de instalações. Estávamos buscando alternativas. Começamos, então, a estruturar, a pensar no que fazer para um projeto [de trazer esse público à empresa] dar certo”, explica.

 

Leandra pontua que a montagem do programa foi desenvolvida com cautela e estratégia, uma vez que não bastava simplesmente ir atrás de alguém com a vontade de trabalhar. Era necessário pensar também no “pós”, ou seja, no aspecto social envolvido, o que inclui moradia, tempo de permanência em abrigo, educação financeira para saber como lidar com a remuneração, eventuais vícios, entre outros fatores.

“Começou uma busca incessante por ONGs para nos apoiar no projeto. Visitei muitas, participei de diversas reuniões e, então, conheci a ABCP, que fazia um trabalho muito próximo do que queríamos. Todo o trabalho de acolher e resgatar das ruas até o processo da pessoa ter uma moradia é feito pela ONG. É feita uma reeducação e então a Cyrela entra para realocar essas pessoas no mercado de trabalho. Oferecemos formação técnica, apoio social e comportamental, damos suporte ao trabalho da ABCP”, diz.

A ONG atua com foco em quatro principais pilares: Abordar: conectar e suprir primeiras necessidades básicas; Acolher: conscientizar e encaminhar para serviços e auxílios, moradia; Acompanhar: identificar habilidades dos indivíduos ressignificar, mentoria e processos de coaching, projeto de vida; e Autonomia: autonomia, inserção no mundo do trabalho, autossustentabilidade, suporte e desenvolvimento pessoal e profissional. Em 15 anos de atuação, a ABCP já atendeu mais de 472 mil pessoas, mantendo uma taxa de 84% de sucesso na reinserção social dessa população.

Burocracias

Leandra esclarece que a cultura da empresa foi um facilitador para o programa nascer e se encorpar. A supervisora de performance conta que a gestão foi aberta a ideia, exigindo apenas que a experiência das pessoas fosse um ponto considerado.

“Fizemos a tentativa e começamos a atuar com uma área específica, que é a de instalações. Temos uma taxa de manutenção de pessoas de mais de 90%, acreditamos muito no projeto e na transformação. Isso porque existe todo um trabalho envolvido, desde a desintoxicação no caso dos dependentes químicos até a autonomia.”

Para a Gerente Sênior de Pessoas e Performance da Cyrela, Renata Meireles, é importante, no entanto, tomar cuidado com eventuais romantizações. A especialista manifesta que o impacto do Juntos para Transformar é positivo, mas exige muita dedicação.

“O trabalho de sensibilização da liderança é fundamental, porque temos que falar abertamente, por exemplo, que as pessoas que têm algum vício podem reincidir nele, podem ter uma recaída. Então, o gestor precisa saber o que fazer, conhecer quais são os canais de contato, quem é o assistente social, etc, pois já houve um caso”, explica. Hoje, todos os líderes são preparados com informações e contatos para lidar com situações indesejáveis que possam ocorrer. “Nós tínhamos o medo de estigmatizar, mas informar faz parte para trabalhar a cultura da diversidade e de inclusão”, acrescenta.

As contratações realizadas pela Cyrela são em regime CLT e a iniciativa tende a ser expandida. Outras áreas, ao identificar as taxas de aproveitamento e engajamento, querem fazer parte da inclusão de pessoas em situação de rua na companhia. O processo documental é, por vezes, desafiador, uma vez que as burocracias para a efetivação de uma contratação formal carece de diversas etapas e documentos, e muitas pessoas em vulnerabilidade social sequer contam com o mais básico, como um RG ou certidão de nascimento.

“Disponibilizamos à ONG a lista necessária de documentos e eles fazem o trabalho. Quando nós entramos, as pessoas já estão preparadas. A ABCP faz a indicação de quem já está apto ao trabalho. Há todo um apoio jurídico envolvido”, salienta Leandra.

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Mudança de vida

Na fase final do programa, ou seja, a etapa na qual as pessoas reinseridas socialmente estão aptas para ter autonomia, há um tapete vermelho. Leandra destaca que cruzá-lo é um símbolo de transformação de todo o processo.

“Não podemos deixar de nos mobilizar e pensar em mudanças que façam a diferença na vida das pessoas, e trabalhar em uma empresa que apoia e incentiva estas ações é maravilhoso. Quando criamos um projeto como o Juntos para Transformar, estamos gerando valor, mudando a vida das pessoas. O que nem imaginamos é que ao fazer uma ação assim, por mais que o foco seja no outro, nós também somos transformados. Conseguir ter empatia pelo problema do outro transforma a vida de quem está ao redor. No tapete vermelho a pessoa é aplaudida, conta sua história e vai para sua casa própria, é emocionante por quem passa pela transformação e para quem contribuiu com ela.”

Juntos para Transformar tem o propósito de mudar vidas

Juntos para Transformar tem o propósito de mudar vidas

Além disso, há a procura por outras ONGs para trazer mais diversidade de públicos à empresa, como o Instituto Fala Mulher, que trabalha com mulheres de extrema vulnerabilidade social ou que sofreram algum tipo de violência. Renata reforça que a companhia planeja os próximos passos dos programas e a expectativa é oferecer trilhas de desenvolvimento diferenciadas, ampliando as possibilidades de carreira dentro da companhia.

“A ideia é impulsionar essas pessoas ao aprendizado constante para que possam seguir crescendo e desenvolvendo suas carreiras. Sabemos que a jornada de transformação ainda é longa, mas é essencial celebrarmos os resultados já alcançados e planejarmos o futuro. Afinal, somente por meio de ações constantes e consistentes é que conseguiremos gerar mudanças positivas e duradouras”, finaliza a gerente.

Por Bruno Piai