Oligarca, Ômicron, codificar, LGBTQIA+ e senciente. O que essas palavras têm em comum? Pelo menos à primeira vista, nada além do fato de suas versões em inglês terem sido algumas das palavras mais pesquisadas em 2022 – cada uma delas por uma razão específica – no dicionário Merriam-Webster, um dos mais conceituados do mundo. Porém, quem ostenta a liderança do ranking, com um aumento de 1.740% nas buscas em relação ao ano passado, é um termo que não só remete a um problema cada vez mais discutido na sociedade, como também a uma questão bastante incômoda – e notada – dentro do ambiente corporativo: gaslighting.

Pelo próprio dicionário, o conceito é definido como “o ato ou prática de enganar grandiosamente alguém para obter vantagem própria”. Em outras palavras, o gaslighting, que não tem uma tradução própria no Brasil, é uma manipulação que traz consigo uma forte carga de abuso psicológico. A inspiração para o termo vem de uma peça teatral homônima de 1938, além do filme ‘Gaslight’, de 1944. Em ambas as histórias, um homem engana sua esposa a ponto de fazê-la crer que está perdendo a sua sanidade.

“O manipulador age de modo que a pessoa manipulada deixe de acreditar nela mesma. Cria-se um relacionamento de codependência no qual a pessoa desacredita tanto em si mesma, que depende de outra para poder se orientar. A vítima projeta sua orientação, sua coesão emocional. Assim, o manipulador continua sustentando e alimentando o seu controle, que é o que ele busca. Desacreditar a memória ou comportamentos são as formas mais comuns desse tipo de manipulação”, explica o psicólogo com experiência em Recrutamento & Seleção, Bruno Lanaro, cofundador do canal Conhecimentos da Humanidade.

O especialista ressalta que, por mais que muitas vezes o conceito esteja mais relacionado a questões amorosas ou sociais, ele também se faz presente nas relações de trabalho. Práticas como ameaças, transferências de responsabilidade ou críticas injustas e exageradas são exemplos de ações que inferiorizam a vítima, que se sente dependente de um líder ou de um colega para se manter em seu emprego.

Bruno Lanaro

O psicólogo Bruno Lanaro

Nesse sentido, Leandro Lousada, Diretor de Cultura da FCamara e também um dos cofundadores do Conhecimentos da Humanidade, pontua que além da relação entre líder e liderado, nas próprias relações entre líderes ou entre colegas de trabalho pode existir o gaslighting. O executivo acentua que dentro de uma estrutura hierarquizada, um exemplo de quando a manipulação é aplicada é nos casos em que há a concorrência por uma vaga.

“O abusador acaba, então, se sobressaindo como a única opção viável para a posição em questão. As lideranças precisam olhar para isso no dia a dia, pois isso pode sabotar a produtividade do grupo. Pode ser que nem todas as pessoas estejam preparadas para a vaga, mas há uma distância enorme entre ausência de preparo e convencimento de que não se é bom o suficiente”, diz.

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Como identificar a manipulação?

De acordo com Lousada, o processo manipulativo não costuma ser tão explícito ou ostensivo no início. Ele aponta que um conjunto de pequenas ações é o que vai, com o tempo, fortalecendo o abuso psicológico. Por isso, é habitual que o abusador conheça a sua vítima, pois assim ele “testa” procedimentos até identificar os pontos nos quais sua estratégia melhor decorre.

“É algo que começa devagar até se tornar uma rotina. A grande questão é a pessoa que sofre a tentativa de manipulação ter a capacidade de perceber se foi um fato isolado ou se há uma repetição no processo. Ela deve ficar muito atenta a detalhes. Exemplo: numa sexta-feira à noite o líder altera a data de uma reunião para a segunda-feira de manhã. A vítima, que não terá tempo para se preparar, pode não ter sido informada em nenhum momento que a alteração poderia ocorrer, mas escuta do líder que foi avisada sobre a mudança. Se isso acontecer com recorrência, torna-se preocupante”, explica.

Em meio a esse panorama, Lanaro esclarece, porém, que se perceber manipulado é uma tarefa difícil. Por isso, ele salienta a importância de se ter clareza sobre a própria mente, uma vez que isso ajudará a identificar melhor se há ou não de fato alguma situação problemática.

“Existe um fenômeno chamado alucinação de memória. Ele acontece com todas as pessoas que têm conteúdos reprimidos ou inconscientes na mente. Essa alucinação evidencia que a nossa memória não é perfeita, pois ela tem um plano de fundo que corresponde à nossa vivência pessoal e não exatamente à realidade pura e objetiva. Muitas vezes em uma discussão temos certeza que falamos algo, quando na verdade não foi falado. Agora, a frequência com a qual ocorre e com quem é o que vai ajudar a entender se há ou não manipulação”, elucida.

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O RH deve estar atento

Uma vez que o gaslighting pode ter consequências como perda da autoconfiança, dificuldade para tomar decisões, perda da própria identidade, problemas de autoestima e consequentes enfermidades como Burnout, ansiedade, estresse, depressão, entre outras, a dupla deixa claro que o RH precisa estar pronto para identificar potenciais focos e ocorrências da prática.

O psicólogo orienta que haja uma rede de apoio não apenas externa – amigos, familiares, etc -, mas também dentro das organizações. A estrutura empresarial tem o papel de ser acolhedora e contar com pessoas que se atentem a circunstâncias que possam impactar o emocional do seu quadro de profissionais.

Um RH estruturado e com a habilidade de ouvir os colaboradores sem promover julgamentos é parte importante do processo. Muitas vezes é necessário que haja tal intermediador na situação, pois a conversa direta entre a vítima e o abusador só tende, segundo Lanaro, a potencializar o problema, uma vez que a postura do manipulador será a de autodefesa. Não à toa, a quebra do vínculo estabelecido pela dependência tende a ser a solução mais viável.

“O acolhimento do RH é fundamental, assim como o sigilo. Mas existe um outro ponto que é a coleta de informações. Quando se começa a olhar para a pessoa e nota-se que ali existe alguém passando por algo, é importante entender que há uma verdade ali, mesmo que parcial, que está mexendo com o seu emocional. É preciso ter algum tipo de métrica, de verificação de checagem, algum meio para que eu, como RH, possa tomar uma ação com as informações que eu recebo”, comenta o especialista. “Se o RH está ali só para recrutar e fazer pagamentos, as pessoas não têm apoio”, acrescenta.

Alguns alertas evidenciam potenciais casos de assédio dentro das organizações, sejam eles configurados como gaslighting ou não. Em geral, a regularidade das más práticas é o que separa um “dia ruim” de um cenário em que, de fato, existe um contexto de assédio.

Outro fator é não cair na armadilha da “resiliência acima de tudo”. Lanaro ressalta que é necessário saber diferenciar situações que, de fato, são mais complexas dentro da rotina de sobrevivência das empresas, dos casos em que há uma postura abusiva por parte de colegas, líderes e gestores. “É muito tênue. Você vai dizer que a pessoa não foi assediada porque, apesar de se sentir assim, o assediador não teve a intenção?”, questiona o psicólogo.

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Mas nem tudo é assédio ou gaslighting

Segundo Lousada, apesar de toda a gravidade presente nos atos que representam o gaslighting, as pessoas precisam ter o cuidado para não sofrer com “sintomas de internet”, além de entender que há panoramas que podem ser alterados por meio de uma comunicação transparente. Embora, como citado acima, a conversa direta não tenha maiores efeitos quando já existe uma jornada de manipulação, ela pode ser uma solução para inibir estágios iniciais que, por vezes, não são propositais.

Leandro Lousada

Leandro Lousada, Diretor de Cultura da FCamara

“Numa relação entre líder e liderado, por exemplo, se um líder te dá um rótulo ou algo do tipo, talvez um primeiro caminho, dependendo da relação entre você e ele, seja chamar para conversar e dizer que não está feliz com isso. Em seguida, é ver o que acontece, checar se o feedback foi positivo, se há um pedido de desculpas, se o líder realmente achava que era uma brincadeira. Temos um choque geracional, então há pessoas de determinadas gerações que faziam brincadeiras que, hoje, são ofensivas às pessoas mais novas. Muitos líderes se abrem a ouvir, a entender que há coisas que não devem mais ser ditas. O alinhamento de expectativas em relação a tratamento é importante”, acentua.

Por fim, Lousada aconselha que as pessoas tenham cuidado com a forma como encaram conceitos que estão em “moda”. Sendo o gaslighting um deles, é uma tendência natural que quem o conheça preste mais atenção em determinados comportamentos dentro das empresas. Contudo, o cofundador do Conhecimentos da Humanidade explica que o ser humano possui um “viés de confirmação”, ou seja, quando quer confirmar algo, começa a enxergar sinais em tudo.

“Então, temos que tomar cuidado para não começarmos a achar que tudo é gaslighting. A pessoa checa uma lista e ao notar uma ou duas coisas que parecem estar acontecendo, ela valida que é vítima de gaslighting. O melhor caminho é sempre dialogar, falar com pessoas de confiança, identificar com elas se também têm a percepção de que algo está acontecendo. Por fim, o RH deve estar preparado para não ser um replicador, não argumentar com frases como ‘você está maluco(a)’, porque esse é o tipo de argumento que um praticamente do gaslighting usaria”, finaliza.

Capa: Via Depositphotos

Por Bruno Piai