O dia 29 de janeiro se tornou um marco para a luta da comunidade trans no Brasil. Foi nesta data, em 2004, que um grupo de ativistas foi convidado ao Congresso Nacional para participar de pioneira e importante campanha em território nacional contra a transfobia e a favor da diversidade de gênero. De lá para cá, com a notoriedade simbólica da data em prol da causa, todo 29/01 é representado como Dia da Visibilidade Trans.

A mobilização do movimento no Brasil ainda é recente. É somente de 1962 o primeiro registro oficial encontrado de uma instituição LGBTQIA+ no país, a Turma Ok, que nasceu no Rio de Janeiro em meio à ditadura e se mantém ativa até hoje. Voltando ainda mais no passado, o pioneirismo do público transgênero/travesti por aqui é de 1591 e pertence a Xica Manicongo, negra escravizada que viveu na Bahia.

Do século XVI ao atual, o movimento passou por uma completa transformação e conquista cada vez mais o seu espaço na sociedade. Das quadras esportivas ao mercado de trabalho, da retirada da homossexualidade (não confunda com a transexualidade) da lista de doenças mentais internacionais (em 1990) até a autorização judicial para que seja possível alterar oficialmente nome e gênero (2018, curiosamente bem no Dia Internacional da Mulher – 8 de março), foram – e continuam sendo – anos de muitas batalhas dentro de uma sociedade ainda conservadora e preconceituosa.

É exatamente tal conservadorismo somado aos preconceitos e recriminações que mostram que a causa ainda tem muito o que combater. De acordo com a ONU, nenhum outro país do mundo, em números absolutos, mata tantas pessoas trans quanto o Brasil. 

E quando mudamos de esfera e observamos o mercado, poucas portas ainda se abrem, apesar do trabalho de instituições como a TransEmpregos atuar firmemente para mudar o panorama. O mais recente relatório da violência homofóbica no Brasil, publicado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), revela que 90% do público trans, em algum momento, entra na prostituição para garantir sua sobrevivência. Uma estatística assustadora que não nos deixa esquecer o quão destruidora é a transfobia.

Diante do atual cenário, a população trans se movimenta para construir uma sociedade e um mercado de trabalho mais inclusivos. E, nesse contexto, mais do que nunca é preciso que pessoas inspiradoras tomem à frente ações que possam mudam o rumo da realidade de transgêneros (pessoas cuja identidade de gênero é diferente da de seu sexo de nascimento) e travestis (um termo que não é difundido mundialmente e que normalmente é relacionado a uma identidade de gênero feminina – vale ressaltar que cabe a cada indivíduo se reconhecer como transgênero ou travesti). Uma dessas pessoas é Lorena Valocci Vieira de Camargo, a primeira mentora trans do Brasil e CEO do Instituto Valocci de Mentoring.

Nascida em Mairinque, interior de São Paulo, a jovem de 23 anos vive em Ibiúna, também interior do estado. Formada em RH e no programa de mentoria do Global Mentoring Group, a paulista conta atualmente com dez mentorados, destacando seu trabalho em autoconhecimento, inteligência emocional e equilíbrio emocional, assim preparando pessoas não só para se aceitarem, como também para encarar os desafios do mercado de trabalho. Confira o bate-papo com a mentora:

Lorena Valocci

RH Pra Você: Antes de tudo, conte para nós: quem é a Lorena?

Lorena: Tenho 23 anos, uma idade que faz com que algumas pessoas estranhem a maneira como atuo no mercado de trabalho. Mas eu considero muito representativa a visibilidade que eu consigo levar a causa trans com essa idade. Descobri que era trans em 2012, e essa descoberta me fez entrar em depressão.

Eu não conseguia aceitar, minha mente estava confusa. Tive muitos conflitos comigo mesma. Foi só em 2018 que saí do estado de depressão, que foi quando entrei em um curso técnico de Recursos Humanos. Eu gosto de área e foi sua essência e a das pessoas que estudavam comigo que me fizeram ter a coragem de ser quem eu sou. Finalizado o curso, descobri a área da mentoria, uma novidade para mim.

RPV: Quando você deu início ao seu processo de mudança e se assumiu como transgênero?

Eu não cheguei a fazer a transição porque, por enquanto, ainda não fiz o processo hormonal. Mas quando eu realmente me assumi como uma pessoa trans foi no final de 2019, próxima de completar 21 anos.

RPV: Sua família lidou bem?

Nesse sentido, me considero privilegiada. Minha família me apoia. No começo, naturalmente, minha mãe teve uma preocupação maior. E eu entendi isso. Se eu demorei 20 anos para entender quem eu sou e aceitar, a pessoa que não sente isso não vai compreender do dia para a noite. Hoje, nós somos muito conectadas, ela me respeita, então foi primordial respeitar o tempo dela, mas, claro, sem deixar de viver a minha vida.

Hoje, há respeito mútuo da parte dela e também dos meus irmãos e do meu pai. No começo eu tive receio de me sentir exposta porque não sabia o que eles pensariam, mas tive a certeza do amor e respeito deles na minha formatura de RH, em que fui chamada como Lorena, pude ser realmente eu, e eles me abraçaram, se orgulharam de mim.

RPV: Você sempre buscou trabalhar com a gestão de pessoas?

Em 2016, eu estava muito focada em entrar na área da Moda. Não era o que queria, mas era o que eu buscava por medo do preconceito que eu imaginava que ia enfrentar em outras áreas. Geralmente na Moda, no ramo de Estética, é mais fácil ter alguém da comunidade LGBTQIA+. O ramo é até rotulado a favor desse público. Porém, quando eu entrei em RH, pensei comigo: ‘não vou me submeter a isso’. Moda não era mesmo o que eu queria.

Quando eu descobri de fato a mentoria, em 2020, entendi que tudo o que passei, todos os sentimentos, toda a superação, poderiam agregar na vida das pessoas. Foi quando descobri que era isso o que eu precisava fazer da minha vida. E me sinto realizada por fazer isso hoje.

RPV: Como foi o seu processo de autodescoberta? E em qual momento você viu no trabalho com pessoas uma porta que poderia se abrir?

Comecei a pensar no mercado de trabalho em 2015, quando eu estava no último ano do Ensino Médio. Não tinha, na época, me assumido trans. Somente alguns amigos próximos sabiam. E eu me questionava sobre qual rumo tomar. De início, como comentei, minha cabeça pensava na Moda. Era muito comum você ver pessoas trans, travestis, na prostituição, mas não no mercado de trabalho em áreas administrativas. Eu ‘quebrei a corrente’ em 2018 quando fiz RH, mesmo já tendo feito um técnico em Administração anteriormente, em 2016.

Eu senti a essência de seres humanos que respeitam o outro. Eu poderia agregar valor às pessoas se eu investisse no que eu sempre quis de verdade. Tenho paixão em desenvolver pessoas. E quando tomei coragem para decidir o que queria para minha vida, oportunidades apareceram.

RPV: No processo da sua atuação na mentoria, você trabalha com seus mentorados pontos importantes como o autoconhecimento e o equilíbrio emocional. Mas como foi para você desenvolver esses pontos?

Quando eu me descobri, eu não tinha condições de pagar por auxílio psicológico e não podia contar para a minha família em razão do medo. Então, vivi os anos de depressão e o que me ajudou foi assistir vídeos de pessoas trans contando suas histórias. A Nany People, por exemplo, foi uma enorme inspiração. Foi então que comecei a entender quem eu era e aceitar. Primeiro veio a rejeição, depois a aceitação e só então eu consegui superar.

Foi difícil, a princípio, entender que a minha história pode ajudar outra pessoa, justamente por ser uma minoria que agora está começando a entrar no mercado. E são pessoas que não por não ver essa representatividade, se sentem sós.

RPV: Quais os pilares da sua mentoria?

Eu não sou psicóloga, então trabalho inteligência emocional que é algo mais prático, mais simples. Convido a conhecer as emoções, a se questionar como é a reação a elas. O que eu mais gosto de trabalhar na mentoria é a questão da empatia, que é difícil de desenvolver. É você compreender o outro. As pessoas pensam que é um processo que só envolve dor, tristeza, mas, na verdade, contempla tudo. É compreender o outro de uma maneira geral.

Minha bagagem, meu estoque emocional, eu uso para promover uma elevação de autoestima às pessoas na mentoria. Ajudo, dou conselhos, incentivos, há ferramentas para isso, e todos os meus mentorados têm resultado com isso.

RPV: Apesar de nova, você tem uma bagagem e uma responsabilidade muito grande. Como foi, efetivamente, sua entrada no trabalho de mentoria?

A mentoria me chamou muito a atenção por envolver o compartilhamento de experiência. Meu tutor me indicou uma certificação internacional, a fiz, e quando terminei precisei de um tempo para absorver todo aquele processo. Fiz mais cursos para me aprofundar na questão e comecei a atender. Mergulhei de cabeça nisso e quando descobri que era a primeira trans do Brasil nesse processo, fiquei um pouco chocada. É algo muito significativo, você nota o peso disso. Fui muito aceita, as pessoas me respeitam, é uma sensação incrível.

RPV: Como você orienta as pessoas que te procuram em relação a como encarar o mercado de trabalho?

Mais uma vez, aqui levanto a importância da empatia. Empresas que fazem da diversidade um troféu querem o famoso lacre, lucrar com a comunidade, tudo para ter uma boa publicidade de mercado, mas não fazem a função de uma empresa que é ajudar a sociedade. Eu passo aos mentistas a importância do exercício da empatia porque eles estão lidando com pessoas que não têm conhecimento do peso das palavras delas, assim como de suas ações. É um caso também de ignorância, no qual a pessoa pode ter sido criada para não aceitar o que é diferente.

É importante o RH trabalhar a inclusão na empresa. Levar à diretoria indicadores, trabalhar o convívio social no ambiente de trabalho, porque ele é benéfico. Entender que há pessoas diferentes ajuda a construir uma relação de trabalho pautada no respeito. A produtividade melhora, há conexão, há maior compreensão de público, visão de pertencimento. É importante a militância nas ruas, mas também o exercício do direito de existir. O preconceito contra uma pessoa trans é muito forte porque ela dá a cara a tapa, ela não tem como omitir quem é, e as pessoas não querem conhecer sua história, compreendê-la. 

RPV: Qual a mensagem que você passa para esse público encontre o seu lugar no mercado de trabalho e possa trilhar a carreira que sonha?

Para você que está buscando o seu espaço no mercado de trabalho, um conselho valioso: não se esconda, seja quem você é. Conquiste seu espaço no seu tempo e da forma que faça você se sentir bem. Não existe fórmula secreta quando o assunto é ser feliz! Se coloque em primeiro lugar, coloque seus sonhos em primeiro lugar, valorize-se porque ninguém vai viver por você. E seja sempre uma pessoa idônea. Seja independente, não espere dos outros algo que só você é capaz de dar a si mesmo.

E um recado geral: jamais permita que o julgamento de alguém lhe impeça de ser feliz. Não sabote sua vida e sua própria felicidade para agradar alguém. Isso vale para todos!

Por Bruno Piai