Em abril de 2023, a analista de logística Aline, 25, e cerca de outros 30 colegas de uma empresa de varejo da capital paulista, passaram por um treinamento de dois dias sobre resiliência e inteligência emocional. No processo, foram realizadas duas palestras, uma mentoria e uma dinâmica para compreender como cada um dos participantes reagiria a uma série de diferentes situações.

Passados os dias de ação que, segundo a profissional, contou com a presença do RH, mas não da liderança de outras áreas, algumas “situações desagradáveis” passaram a ser comuns. “Esse treinamento foi o primeiro que a empresa realizou desde a minha chegada, que havia sido há pouco menos de quatro anos. Ele foi bem interessante. Mas a pegadinha estava por vir”.

Aline expõe que a cobrança para que metas fossem batidas era alta, o que, para ela, “é normal em muitas empresas”. Mas o que não era normal era a grosseria envolvida nesse processo de cobrança, o que se tornou mais frequente depois do treinamento.

Nossos líderes eram ‘brucutus’. E o treinamento virou argumento para justificar estupidez. Foram diversas situações com colegas. Uma vez comigo, por exemplo, meu chefe perguntou se ‘a empresa pagou para eu dormir durante a palestra’, pois meu emocional era ‘fraco demais’. Há outra pessoa do meu setor, foi dito que ‘jogaram dinheiro fora, pois ‘todos continuavam chorões’. Entendi, então, por que os líderes não participaram: não era um treinamento para melhorar a postura deles, mas para nos submeter a mais abusos em nome da ‘resiliência e da inteligência emocional’. Era para normalizá-los. Se você não aguentasse, o problema era o seu emocional fraco, não a postura deles”, conta.

Colab:
– As muralhas da resiliência
– Inteligência emocional em tempos de inteligência artificial

Conceito distorcido pelas empresas

Segundo o Relatório “O futuro do recrutamento 2024”, do Linkedin Talent Solutions, 73% dos profissionais de Recursos Humanos afirmam contratar trabalhadores priorizando as suas competências. Porém, um estudo elaborado pela consultoria Page Personnel, com 1,4 mil executivos de RH, revelou que 90% das demissões estão relacionadas à falta de inteligência emocional, sugerindo que a saúde mental também deve ser levada a sério no ambiente organizacional.

“O trabalho exerce uma influência significativa na saúde mental dos profissionais. Por isso, é fundamental que as empresas enxerguem a inteligência emocional como uma abordagem preventiva na promoção do bem-estar e na prevenção de transtornos mentais. Isso inclui a criação de políticas e práticas que valorizem a saúde emocional, diagnósticos adequados,  bem como a disponibilização de recursos de apoio psicológico e psiquiátrico”, destaca Nayara Teixeira, diretora de Produto e Operações da Mapa. 

Todavia, nem todas as empresas estão preparadas para investir nessas estratégias. De acordo com o estudo “People at Work 2023”, do ADP Research Institute, 57% das pessoas acreditam que seus superiores não estão preparados para falar sobre questões de saúde mental sem julgamento. Além disso, somente no Brasil, 67% dos trabalhadores dizem que seu trabalho é influenciado pelo estresse e 31% pela saúde mental.

De acordo com Lorena Valocci, CEO do Instituto Valocci de Mentoring, antes do início de qualquer ação, primeiramente é preciso entender o que é a inteligência emocional dentro do contexto empresarial. Ela esclarece que o conceito parte de quatro pilares, que são o autoconhecimento, o autocontrole, a empatia e a conexão social. E a aplicação disso no trabalho não significa “lidar com tudo de boca fechada e trabalhar o emocional para ‘aguentar’ as situações”.

“Isso passa por você se conhecer mais e respeitar os seus limites emocionais. Isso não significa que não haverá mais choro ou sentimentos como a raiva, pois a emoção tem que ser expressada. Mas ela pode ser controlada”.

Lorena conta que são criados muitos “treinamentos emocionais” nos quais as pessoas têm que suportar assédio moral e são preparadas para naturalizar situações irregulares no trabalho. É uma forma, explica a mentora, das empresas praticarem a desumanização, uma vez que “transformam as pessoas em máquinas”. É quando o ‘ser resiliente’ se torna uma armadilha.

“Uma vez entrevistei um piloto de avião. A aviação, por exemplo, é uma área na qual pouco se fala, pelo menos de forma aberta ao público, sobre saúde mental. Pois, imagine, alguém saber que o piloto de uma aeronave tem depressão. Quantos aceitariam voar com ele? Então as empresas estão vendo a resiliência como uma abertura, infelizmente, para interpretar que as pessoas sofrerão um baque, mas voltarão para o mesmo lugar, como um bambu.”

A mentora pontua, ainda, que o RH não pode ser isento disso, uma vez que “esquece o que são os recursos humanos”, ou seja, trabalhar o emocional, o comportamental das pessoas. “O ser humano tem muitas emoções, se não lidarmos bem com elas, nós teremos problemas. Muitas empresas criam seus próprios treinamentos de resiliência que se prendem naquele discurso de que ‘a vida não é fácil’. E eles não são adaptáveis a todos os colaboradores. Cada indivíduo tem questões internas para resolver”.

Dois dias para trabalhar a inteligência emocional?

Lorena destaca que o foco da sua mentoria é auxiliar os alunos a tomarem melhores decisões e terem mais assertividade na resolução de problemas. Ela enfatiza que a jornada para o desenvolvimento emocional, no entanto, não é concretizada em dois dias. O treinamento o qual Aline e os colegas foram submetidos não teria como trazer resultados concretos no desenvolvimento da resiliência.

“Há empresas que fazem trabalhos sérios e que dão resultado. Outras simplesmente trazem um psicólogo para palestrar na SIPAT (Semana Interna de Prevenção de Acidentes do Trabalho). Seguindo um processo de terapia e mentoria, a chave para melhorar o emocional é a frequência. Um dia ou uma semana de treinamento não farão nada. O acompanhamento deve ser de pelo menos três meses – mas não uma vez por mês durante três meses”, elucida.

Colunas:
– Saúde mental, recursos humanos e a nova certificação
– Estudo ‘Inteligência emocional e saúde mental no ambiente de trabalho’: desafios ao RH

Segundo a CEO do Instituto Valocci, quando há um treinamento sério, existem exercícios práticos e reflexivos com técnica e observação. Existirá todo um aparato de aprendizagem e aplicação.

“A inteligência emocional permite que você expresse com liberdade as suas emoções. Esses treinamentos não podem focar só na motivação e tampouco podem ser rasos ou só falados. O colaborador quer saber o ‘como’, não o ‘o quê’. E no trabalho é ainda mais fácil ter o controle do que em outros ambientes, como o familiar. Se o treinamento não for situacional e não for em cada colaborador, ele não tende a ser positivo. E não dá para ter sucesso sem a frequência”, finaliza.

Por Bruno Piai