É impensável imaginar, hoje, o trabalho do RH e das lideranças sem o apoio dos algoritmos. O uso de inteligência artificial é crucial para agilizar o processo seletivo – sem perder assertividade -, coletar e trabalhar com dados, tornar indicadores de gestão mais eficientes, entre outras utilidades que permitem a realização de trabalhos mais estratégicos e menos operacionais.

Todavia, a tecnologia tem atuado de maneira decisiva em diversos setores e vem ganhando cada vez mais espaço nas variadas tomadas de decisões. O questionamento que fica é: qual o equilíbrio entre deixar que escolhas sejam feitas por um ser humano ou uma máquina, principalmente quando envolve uma outra pessoa?

Em setembro deste ano, um caso envolvendo uma startup russa chamou a atenção e causou polêmica. A Xsolla, empresa de serviços de pagamento, dispensou 150 colaboradores – de um total de 450 – que integravam os escritórios das cidades de Perm e Moscou. Embora as demissões em massa não sejam incomuns, o que não pegou bem à organização foi o CEO Aleksandr Agapitov declarar que todos os desligamentos foram realizados após uma análise de big data. A decisão foi tomada seguindo apenas a recomendação de um algoritmo de eficiência no trabalho.

No email aos dispensados, o executivo russo dizia que os colaboradores foram marcados como desinteressados ou improdutivos, além de não estarem sempre presentes nos postos de trabalho durante a atuação remota. “Muitos de vocês podem ficar chocados, mas eu realmente acredito que a Xsolla não é para vocês”, acrescentou.

Pelo Twitter, o CEO se manifestou após a repercussão negativa da demissão de pessoas por conta do “feedback” da inteligência artificial. “Essa história teve muita repercussão entre os profissionais de RH e brinca com os medos dos funcionários de que a tecnologia seja usada contra eles. Isto é incompreensível. Acredito que as decisões baseadas na inteligência artificial estão desempenhando um papel cada vez maior em nossas vidas. É algo para ter medo ou uma nova oportunidade?”, escreveu. À Forbes, ele chegou a dizer que não concordava integralmente com tudo o que “a máquina decidiu”, mas não teve como adotar outra postura pois deveria seguir um acordo realizado com acionistas.

A Amazon, maior varejista on-line do mundo, também tem usado a tecnologia para decidir a vida de seus funcionários. Recentemente, um funcionário da companhia relatou que foi dispensado das suas atividades de entregador, pois o aplicativo que o monitora destacou que ele não fazia entregas no prazo. No entanto, segundo o funcionário, não foram considerados os empecilhos, como complexos de apartamentos que ele não conseguia entrar pois eram trancados com chave.

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Empresas estão se perdendo no uso de tecnologia?

Com exemplos como esses deixando de ser raros, o assunto vem ganhando destaque nas discussões entre profissionais de RH. Jorge Martins (foto abaixo), CEO da Bullseye Executive Search, empresa de recrutamento e seleção, aponta que a tecnologia é essencial no desenvolvimento humano e na obtenção de agilidade de processos, mas que não deve ser usada em todos os casos sem supervisão humana.

Jorge Martins

“A demissão de um funcionário deve envolver diversos fatores. Não se deveria tratar pessoas apenas como números. O ideal é conversar, tentar ver onde está o erro, entender por que a entrega não está sendo feita e assim atuar para reverter e melhorar a situação. Engana-se quem pensa que essa atitude é boa apenas para o funcionário. A empresa perde, e muito, quando demite sem tentar reverter, pois muitas vezes tem que pagar custos trabalhistas, além de ter que treinar novos funcionários. Quando poderia simplesmente ter feito alguns ajustes”, aponta Jorge.

O executivo pontua, ainda, que em qualquer decisão que envolva demissão é necessário que se leve em consideração, além do aspecto profissional, as circunstâncias pessoais. Não importa se é uma empresa pequena ou uma gigante. As soluções tecnológicas devem ser complementares e as ações humanas e não o contrário. “Nenhum ser humano deveria ser demitido sem um contato humano, mesmo que ele seja feito de forma online, já que os formatos de trabalho mudaram. É necessário o mínimo de respeito e empatia”, pontua.

O fundador da Amazon, Jeff Bezos, afirmou em entrevista recente que as únicas decisões empresariais que são imprescindíveis deixar nas mãos de seres humanos são “as estratégicas”. As demais, as decisões “cotidianas”, por mais importantes que sejam, devem ser tomadas preferencialmente por algoritmos de inteligência artificial, porque eles agem levando em conta todas as informações relevantes e sem interferências emocionais.

No entanto, segundo Martins, o problema está exatamente em não ponderar. O profissional aponta que a empatia, por exemplo, é um fator emocional que não pode ser descartado. “A tecnologia pode e deve ser usada para melhorar o desempenho dos funcionários, aumentando assim a produtividade e os ganhos da empresa. Ou seja, quase um parceiro. Não um antagonista. É preciso entender que há um limite para algoritmos resolverem problemas complexos. Não se pode deixar que máquinas decidam sobre vidas “, salienta.

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O algoritmo pode decidir minha vida?

Não é tão simples definir se sim ou se não. Em entrevista ao El País, o especialista em direito trabalhista Fabián Nevado, assessor do Sindicato dos Jornalistas da Catalunha, define esse tipo de demissão como “moralmente inadmissível”, criticando a ausência de respeito e empatia em desligamentos conduzidos de tal modo. O portal traz também trecho de um documento da União Geral dos Trabalhadores da Espanha no qual, por conta da preocupação referente à proliferação de decisões baseadas somente em dados de IA, pede regulamentação para que se haja transparência nos critérios que a inteligência artificial utiliza para a tomada de decisão.

Em artigo para o portal OCP News, a advogada trabalhista Daiane Thomsen Wessler, da Mattos, Mayer, Dalcanale & Advogados Associados, explica que “é perfeitamente legal que as empresas utilizem a inteligência artificial para monitorar o desempenho de seus funcionários. A máquina pode ser ferramenta utilizada para justificar uma demissão, mas não deve exceder a experiência e a capacidade de raciocínio humanas em áreas que tenham claras implicações éticas”.

Segundo o advogado Carlos Alvim, especialista em Direito Trabalhista e em Direito Previdenciário, embora o uso de algoritmos seja cada vez mais comum em todas as áreas do negócio, ainda não há uma regulamentação clara no que diz respeito às demissões. Para ele, por conta do caráter ainda subjetivo, em um processo, por exemplo, diversos detalhes podem ser considerados para determinar um ganho ou perda de causa.

“A Lei Geral de Proteção de Dados elucida que deve haver boa-fé e transparência no manuseio de dados. Se a decisão por uma ou mais decisões é conduzida por um algoritmo, é necessário clareza nos critérios adotados. O que exatamente a Inteligência Artificial avalia é algo a ser questionado. Há diversos fatores internos e externos que fazem um colaborador render mais ou menos, além de situações que a IA não vai identificar. O algoritmo pode recomendar que um entregador seja demitido por atraso nas entregas, mas ela é capaz de identificar que por trás disso houve trânsito, enchente, acidente ou algum outro fator que motivou o atraso”, destaca o especialista, que acrescenta que é necessário compreender se a IA é “imparcial” em relação a todos os trabalhadores.

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Outro ponto: a IA foi desenvolvida sem nenhum viés? Vale lembrar que algoritmos do Twitter, por exemplo, identificavam de maneira diferente pessoas brancas e negras, o que impactava em algumas funções. A construção do algoritmo pode privilegiar um público e prejudicar outros. Basta ver em processos seletivos, nos quais facilmente uma inteligência artificial identifica habilidades técnicas, mas pouco sabe sobre as competências sociais do candidato. Há muito o que ser avaliado antes que o algoritmo possa ser efetivamente um tomador de decisão no que se refere a uma dispensa”, finaliza.

Por Bruno Piai