Durante pouco mais de quinze anos, Sandra*, uma paulistana de 44 anos, atuou em dois respeitados escritórios de advocacia de São Paulo. Chamada de “doutora”, tratamento de costume atribuído a muitos advogados – mais pela força do hábito -, a profissional, de fato, fazia jus à descrição. Entre universidades públicas e particulares, ela fez sua graduação, rapidamente emendou uma pós, seguiu para o mestrado e, enfim, após um breve hiato nos estudos, concretizou o seu doutorado.
Apesar de toda a trajetória acadêmica e de trabalho na área do Direito, Sandra almejava uma mudança. Desde criança, seu desejo era trabalhar como arquiteta, um sonho que se perdeu ao longo dos anos, especialmente pela pressão familiar de ser filha de advogados. Já tendo uma condição financeira bem estabelecida, ela, solteira, sem filhos e bem resolvida, deu início à formação em Arquitetura e Urbanismo pela faculdade Belas Artes.
Criativa e determinada, conseguiu facilmente emprego na área. À beira dos 40, mas com a disposição e humildade de um aprendiz, deu início a um novo caminho. Contudo, algumas turbulências foram enfrentadas. Sandra conta que no pouco tempo que ainda tinha de experiência como arquiteta, se sentia realizada. Naturalmente as finanças foram duramente impactadas, mas era questão de tempo para se recuperar. O que não era tão simples de resolver, porém, era o ego.
“Eu sentia falta de duas coisas do meu tempo de advogada. Uma delas era o dinheiro, claro, mas minha mudança foi consciente de que por um tempo eu teria que baixar o meu padrão de vida. Mas a outra coisa era a forma como as pessoas me olhavam. Parecia que eu estava em outro patamar, sabe? Não era Sandra. Era a doutora Sandra. Onde quer que fosse, meu status de advogada – boa, modéstia à parte -, me acompanhava. Aquilo me movia de uma forma que não sei explicar. Era a concretização de anos de formações. Como arquiteta, o mundo se tornou outro”, diz.
Sandra conta que, como advogada, mergulhou em seu trabalho. Muitas vezes a frustração por não fazer o que a deixava feliz era suprida pela competência e por como se via e como era vista. Quando fez a transição para uma outra área, mesmo ciente da complexidade da mudança, não imaginou que sucumbiria por não ter consciência de seus excessos.
“Simplesmente, minha saúde mental evaporou. Eu construí a minha vida em volta do trabalho. Me sentia uma ‘ninguém’ sem meu status de doutora. Apesar de ter o doutorado, não significava nada sem estar trabalhando. Meus amigos eram do trabalho, minhas paqueras eram colegas ou ex-colegas de empresa. Sequer nas faculdades construí um círculo social, pois tudo e todos ao meu redor profissional e social envolviam o trabalho. Na arquitetura eu era só um patinho feio. Precisei de ajuda psicológica, pois me senti desesperadamente perdida. Meu trabalho e minha função me definiam”, desabafa a arquiteta, que segue a terapia.
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Prazer, enredamento
Segundo o dicionário Priberam, existem algumas definições para o verbo “enredar”. Para ser curto, vou direto à que mais nos interessa: “enlear, entrelaçar, emaranhar”. Se bem que “armar intrigas, enredos” também pode se encaixar no contexto a ser explicado.
“O enredamento é um termo utilizado para os casos nos quais o paciente se perde entre o que é sua vida social e o que é sua vida profissional. Ou seja, ele mergulha tão profundamente no seu ‘eu corporativo’ a ponto de não conseguir ‘subir à superfície para respirar’, ou seja, criar situações em sua rotina que não tenham o trabalho envolvido de algum modo”, explica a psicoterapeuta Denise Sá.
De acordo com a especialista, é nítido que o caso de Sandra está dentro de um panorama de enredamento. Denise destaca como principal e mais grave detalhe o fato dela ter dificuldades para conduzir sua vida sem deixar que o trabalho seja um definidor de rumos. Além disso, há um outro problema, que está no fato da arquiteta se ver não pela pessoa que é, mas pela profissional que se tornou.
“Realmente é um caso que decorre da necessidade de auxílio psicológico. Pelo relato dela, fica claro que a profissão é definidora de sua identidade. É importante deixar claro que não há problema você ter uma amizade ou um relacionamento com algum colega de trabalho, assim como não está entre os males você se orgulhar de suas conquistas. O porém está no quanto a identidade profissional te consome e te limita a expandir horizontes sociais, familiares, etc”, salienta a psicoterapeuta.
Outro ponto destacado por Denise é que quando você define os rumos da sua vida por conta do trabalho, você nunca é quem está no controle. Segundo a psicóloga, casos assim deixam as pessoas suscetíveis a transtornos mentais como ansiedade, depressão, síndrome de Burnout, síndrome do(a) impostor(a), entre outras enfermidades que atingem o emocional.
“Imagine que todo o seu ecossistema está no escritório. Seu cargo te define, mas um superior pode mudá-lo a qualquer momento ou até mesmo te demitir. Se você só se relaciona com pessoas do trabalho, o quanto a saída delas te machuca? Já tive um caso de enredamento no qual o paciente não conseguia perdoar uma traição. Ele estava carregado de mágoa. A traição foi o melhor amigo conseguir uma vaga melhor em outra empresa. É muito perigoso você definir sua vida pelo trabalho”, elucida.
Em entrevista à BBC, Janna Koretz, fundadora da Azimuth Psychological, clínica localizada em Boston (EUA), explica que, uma vez que a autoestima está tão relacionada à carreira, as pessoas têm mais dificuldades e menos resiliência para lidar com problemas que envolvam o trabalho. “Inevitavelmente, algo vai acontecer”, diz ao site.
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Como superar?
“Trabalhar o ego, o status, não é tão simples. Retomando o caso da Sandra, por exemplo, ela teve uma jornada muito grande para se tornar doutora, o que faz com que seja compreensível o apego que ela tem pelo grau acadêmico. Além disso, fazer uma transição de uma carreira consolidada para um recomeço do zero pode ser muito difícil e mexer muito com a saúde mental. Mas há solução”, diz Denise.
A psicoterapeuta orienta que o indivíduo procure por um psicólogo para auxiliá-lo a iniciar um processo de mudanças de hábitos. Ela pontua, porém, que não pode ser algo feito às pressas, com uma transformação intensa no dia a dia, mas sim por um processo que se inicia na compreensão do quão motivador de ações é o ego, do quanto a pessoa se define pelo sua atividade profissional e, também, do quanto vida social e profissional estão entrelaçadas, um desafio que pode ter se tornado maior por conta da pandemia da Covid-19, na qual muitas vezes o home office virou um “office home”.
“Nós estamos falando de uma situação muito acentuada e que envolve toda uma mudança de identidade. Não é fácil você simplesmente mudar o modo como se vê, criar diferentes grupos sociais, tem todo um trabalho a ser desenvolvido, que começa, com auxílio terapêutico, pela implementação de pequenos e novos hábitos, hobbies, mantras e práticas que vão apoiar para que haja um desprendimento, para que o indivíduo entenda que a sua personalidade não deve ser definida pelo cargo que ele alcançou, pois é tudo muito mutável e controlado por outras pessoas que, muitas vezes, não darão a mesma importância que você dá ao seu cargo”, pontua.
Denise acrescenta que em meio ao processo o RH e a liderança podem ajudar. Para ela, é determinante a criação de um ambiente de trabalho saudável, acolhedor e que não seja movido pela pressão. A psicoterapeuta explica que os arredores do paciente são cruciais para o sucesso do tratamento.
“Enquanto o RH, a liderança e a gestão têm a missão de promover saúde no trabalho, o que envolve, entre outras coisas, dar feedbacks coerentes e coibir excessos – como vemos no home office com casos em que não há horário para o expediente acabar -, amigos e familiares também devem ajudar no processo, não supervalorizando exageros e apoiando na construção de uma visão que vá além do aspecto profissional. Não é fácil, pois socialmente há essa noção de que ‘trabalho é tudo’ e sucesso é apenas profissional, mas há como corrigir. Você não é seu trabalho, você está nele”, finaliza.
*O nome verdadeiro foi alterado a pedido da mesma
Por Bruno Piai