Quando foi aprovada, em 2017, a Reforma Trabalhista mudou mais de 100 itens da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e flexibilizou uma série de direitos dos empregados no Brasil. Uma das principais alterações foi a criação do contrato de trabalho intermitente.
Em linhas gerais, o modelo em questão permite que uma empresa admita um funcionário para prestar serviços eventualmente. Assim, o profissional pode realizar o trabalho de modo esporádico, intercalando períodos de atividade com de inatividade. Os períodos de atividade são determinados em horas ou dias, dependendo da prestação.
A partir da convocação realizada pelo empregador, o trabalhador intermitente atende ou não ao chamado, e, ao prestar o serviço é remunerado por esse período de atividade. Assim, o trabalhador tem a liberdade de realizar outros serviços para empregadores distintos. O que, contudo, é visto como um modelo flexível de trabalho e com potencial para crescer em 2022, é também encarado como um modelo que precariza as condições de trabalho. Mas, afinal, o trabalho intermitente é bom ou ruim para o trabalhador?
Trabalho intermitente é uma realidade
O modelo intermitente é vantajoso para empresas que têm demandas imprevisíveis. Popularmente falando, é a regularização do “bico”. De acordo com a Confederação Nacional da Indústria (CNI), em uma pesquisa feita com 523 empresas, 85% alegaram que planejam contratar colaboradores nessa modalidade em 2022.
Arnaldo de Paula, Gerente de Operações e de RH da Allis, empresa que desde 2019 viabiliza a contratação de trabalhadores intermitentes para as organizações, pontua que as companhias e os Recursos Humanos precisam se preparar para receber esses colaboradores de maneira adequada, visto que a contratação apresenta características que os profissionais da área ainda não estão acostumados.
“A Allis foi pioneira nesse formato de contratação e temos visto um aumento de interesse das empresas que foi ocasionado principalmente pela pandemia”, explica de Paula. “No final de 2020 tivemos em torno de 2.800 atendimentos consolidados de intermitentes no varejo alimentar, de moda e na área de logística, já no final de 2021 tivemos cerca de 19.000”, pontua.
Uma vez que o colaborador em regime intermitente também faz parte da equipe de trabalho da empresa, ele possui os mesmos direitos que os demais empregados, como férias remuneradas, repouso semanal, 13º salário, FGTS e hora extra. A diferença é que os direitos são pagos de acordo com as horas trabalhadas e logo após a realização do trabalho.
De Paula aponta, ainda, que o momento que exige um cuidado maior por parte dos RHs é na formulação do contrato de trabalho intermitente. Por se tratar de uma modalidade de contratação mais recente na CLT, introduzida em 2017 pela Reforma Trabalhista, ainda não existe muita jurisprudência sobre a modalidade no Judiciário, sendo recomendado o acompanhamento por uma assessoria trabalhista e a revisão de todos os detalhes na elaboração do contrato.
Entre os principais pontos que precisam estar especificados estão: a quantia a ser paga pela hora ou pelo dia de trabalho, que não pode ser inferior ao valor do salário-mínimo ou o salário estabelecido em Convenção Coletiva de Trabalho (CCT); o prazo para os pagamentos; locais onde os serviços serão prestados; turnos nos quais o trabalhador intermitente pode ser convocado para prestar seus serviços; maneiras ou ferramentas que serão utilizadas para a convocação e meios para reparar possíveis cancelamento dos serviços.
Modalidade divide opiniões entre especialistas
Assim como diversos pontos trazidos pela Reforma Trabalhista, o trabalho intermitente está no foco de debates “formalização x precarização”. Quando estipulada, a reforma chegou com a expectativa de, em dois anos, criar 2 milhões de empregos envolvendo o modelo intermitente e o parcial (meio período). O que se viu, no entanto, foi a meta alcançar menos de 10% do proposto. Até novembro de 2019, quando ainda não existia pandemia da Covid-19, foram criados 173.340 empregos, somando ambas as modalidades.
Em 2020, com a chegada do novo coronavírus, os contratos intermitentes representavam apenas 1% do total de admissões no Brasil, mas foram responsáveis por quase um terço do saldo positivo do acumulado de contratações formais entre janeiro e novembro do ano em questão.
Segundo o advogado Rodrigo Fidencio, CEO da SYMEE Contrato Intermitente, o modelo se tornou importante para muitos setores sobreviverem à pandemia. “Empresários do setor de comércio, por exemplo, precisaram fechar as portas no lockdown e depois reabrir com restrições de público. Com a instabilidade, a melhor saída para manter o negócio aberto foi optar pelo contrato intermitente, no qual eles registram a carteira do funcionário e pagam apenas pelas horas trabalhadas”.
Para a advogada e especialista em Direito do Trabalho, Karolen Gualda Beber (foto abaixo), empregador e empregado podem se beneficiar dessa modalidade. “As empresas, além da economia – remuneram apenas o período trabalhado -, podem diversificar seus profissionais criando possibilidades e gerando novos talentos. Já o profissional contratado, pode firmar vários contratos, adquirindo experiências e ampliando suas habilidades e competências”, diz.
Mas os números poderiam ser mais promissores se não houvesse grande insegurança jurídica. “No Supremo Tribunal Federal (STF) tramitam ações de inconstitucionalidade alegando a precarização do trabalho. Isso porque o pagamento do salário depende da convocação e do período trabalhado”, explica a advogada.
A especialista esclarece que, diferente do trabalhador eventual, que está sujeito apenas às garantias dos termos do contrato firmado com a empresa contratante, o trabalhador intermitente é um empregado formal com registro em Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), como citado ao longo do texto.
Em contrapartida, na ótica do advogado, professor da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e Diretor Científico do IEPREV (Instituto de Estudos Previdenciários), Marco Aurélio Serau Junior, desde 2017 diversas leis e Medidas Provisórias (MPs) ampliaram o caminho para que leis trabalhistas fossem alteradas.
“O discurso de necessidade de diminuição dos direitos trabalhistas como única forma de ampliação dos postos de trabalho não se confirmou na prática. As estatísticas demonstram que não ocorreu a criação de novos postos de trabalho de modo expressivo, ou que estes se deram em formas precarizadas, como o contrato intermitente, ou a partir de trabalho autônomo, especialmente por plataformas digitais”, analisa o especialista.
Para Serau Junior é significativo anotar que a partir de 2020 o processo de reforma trabalhista foi aprofundado com a perspectiva trazida pela pandemia, “que serviu de motivo para ampliação da transformação da legislação trabalhista para muito mais além do que as simples necessidades de adaptação advindas do cenário de isolamento social”.
Na opinião da advogada Juliana Santos, especialista em Direito do Trabalho, o trabalho intermitente no Brasil “sofre do mesmo mal da pejotização”. Segundo ela, o que era para ser um modelo de trabalho destinado a situações específicas, como aquelas nas quais de fato as empresas precisam lidar com demandas pontuais, se tornou uma alternativa para empregadores contarem praticamente com a mesma entrega por parte dos colaboradores, mas oferecendo a eles um cenário de precarização do trabalho.
“No final das contas, quem está tirando proveito do modelo intermitente são as organizações que não tem demanda pontual, mas ‘fixa’. Não é somente, como dizem, o ‘bico formalizado’, é uma manobra para que as empresas tenham praticamente a mesma mão de obra de um modelo tradicional de contratação, mas pagando bem menos. Não dá para negar que para as organizações é vantajoso, mas o profissional só tem a perder, uma vez que seus direitos são precarizados”, afirma.
Veja mais: Trabalho intermitente: Crescimento e desafios em 2022
O trabalho intermitente pode acabar?
No último dia 7, a Comissão de Direitos Humanos do Senado trouxe à discussão o PL 253/2017, que visa acabar com o trabalho intermitente. A proposta é de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS) e teve, em 2019, parecer favorável do senador Paulo Rocha (PT-PA), relator da comissão.
Caso seja aprovado pela comissão, o projeto ainda precisará passar pelo plenário ou por outras comissões. De acordo com Rocha, embora haja o entendimento de que o Brasil enfrenta uma crise econômica, é necessário encontrar alternativas de mercado que “não desequilibrem a balança em prejuízo excessivo do trabalhador”.
Por Bruno Piai