No período de 2016 a 2020, estima-se, segundo relatório da Organização Internacional (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), que 8,4 milhões de crianças e adolescentes passaram a integrar o cenário de meninos e meninas em situação de trabalho infantil. Ao todo, 160 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos trabalham irregularmente ao redor do mundo. Os dados são do começo de 2020 e remetem a 63 milhões de meninas e 97 milhões, dos quais, do total, 79 milhões atuam em trabalhos perigosos que podem comprometer sua saúde, segurança e moral.

Preocupantes, os números se tornam ainda mais severos ao público infantil quando o relatório mostra que 10 milhões de crianças e adolescentes são vítimas de escravidão e 8,9 milhões estão em risco de fazer parte deste cenário em 2022. Além disso, mais de ¼ das crianças entre 5 e 11 anos e mais de ⅓ do público entre 12 e 14 anos em situação de trabalho infantil estão fora da escola.

Alerta ligado

O documento da OIT e da Unicef aponta que, pela primeira vez em 20 anos, o progresso para acabar com o trabalho infantil não ocorreu. A estagnação tem como uma das vilãs a pandemia da Covid-19, que aumentou o risco de trabalho infantil por conta do crescimento dos índices da pobreza e também em decorrência do fechamento das escolas.

O diretor do Escritório da OIT no Brasil, Martin Georg Hahn, destaca que a pandemia e a consequente crise econômica e social global têm um grande impacto na vida e nos meios de subsistência das pessoas. “Para muitas crianças, adolescentes e suas famílias, a crise significa uma educação interrompida, doenças, a potencial perda de renda familiar e o trabalho infantil”, explica. Segundo Hahn, é imprescindível proteger todas as crianças e adolescentes e garantir que eles sejam uma prioridade na resposta à crise gerada pela Covid-19, com base nas convenções e recomendações da OIT e Convenção das Nações Unidas. “Não podemos deixar ninguém para trás”, acrescenta.

Mesmo proibido no Brasil, o trabalho infantil atinge pelo menos 2,4 milhões de meninos e meninas entre 5 e 17 anos, segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua 2016, do IBGE. Em 2019, das mais de 159 mil denúncias de violações aos direitos humanos recebidas pelo Disque 100, cerca de 86,8 mil tinham como vítimas crianças e adolescentes. Desse total, 4.245 eram de trabalho infantil. Os dados são do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH).

“Os dados revelam o tratamento negligente que o Estado brasileiro tem dispensado a crianças e adolescentes e o enorme distanciamento entre os preceitos constitucionais e a realidade vivenciada; conduzem à inevitável conclusão de que o Estado não se importa com o valor prospectivo da infância e juventude, como portadoras da continuidade do seu povo”, alerta a procuradora Ana Maria Villa Real, coordenadora nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância), do MPT.

Para a procuradora, “o princípio da proteção integral é o único caminho para se chegar a uma vida adulta digna; não há atalhos para isso! Crianças e adolescentes têm direito à dignidade, a florescerem e a crescerem com as vivências próprias de suas épocas. Não há dignidade pela metade. Dignidade é inegociável”, completa.

Discussão pede por cautela

Na última semana, a jovem Rayssa Leal, de 13 anos, fez história ao se tornar a mais nova medalhista olímpica brasileira. Em Tóquio, a skatista garantiu a medalha de prata e foi ao pódio, feito que as compatriotas Pâmela Rosa e Letícia Bufoni, ambas maiores de idade, não conseguiram na estreia do skate como modalidade nos Jogos Olímpicos.

A conquista da maranhense, também conhecida como “Fadinha” se tornou um dos assuntos mais comentados nas redes sociais brasileiras. Uma enxurrada de elogios tomou conta de perfis de anônimos e de famosos. Entretanto, as polêmicas não passaram despercebidas.

Em sua conta no Twitter, o deputado federal Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), parabenizou a medalhista, mas comentou que, se aos 13 anos uma menina é capaz de disputar uma Olimpíada, então o Estatuto da Criança e do Adolescente deve ser revisto. “As crianças brasileiras de 13 anos não podem trabalhar, mas a skatista Rayssa Leal ganhou a medalha de prata na Olimpíadas (sic)… Ué! É pra pensar… Parabéns a nossa medalhista olímpica! E revisão do Estatuto da Criança e Adolescente já!”, escreveu o deputado em sua conta no Twitter. Para a advogada especialista em Direito do Trabalho, Larissa Thomé, a fala do político foi mal expressada e, consequentemente, abre margem para muitas interpretações. 

“O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que recentemente completou 31 anos, indica quais são os direitos e deveres da criança e do adolescente. Segundo ele, é proibido que crianças e adolescentes de até 13 anos realizem qualquer atividade profissional. Hoje, é permitido no Brasil que o indivíduo comece a trabalhar a partir dos 14 anos, mas desde que no contrato de aprendizagem e com toda regulamentação trabalhista sendo seguida à risca. O que o deputado parece defender é que o artigo 60 do ECA seja revisto e flexibilize a atuação de quem tem idade inferior a 14 anos no mercado de trabalho. Mas sem especificar quais são os termos e as condições, o deputado dá brecha para críticas”, pontua. Além disso, Larissa esclarece que o exemplo em questão não se relaciona com atividades laborais, o que torna a postagem de Cavalcante ainda mais complexa na abordagem do assunto. 

“Embora, obviamente, o deputado esteja no direito de não concordar com o estatuto atual, assim como muitas pessoas que concordaram com sua postagem, o exemplo utilizado sequer procede pelo simples fato de que, legalmente falando, a Rayssa não estava trabalhando. A prática de esportes, hoje, por parte de crianças, é compreendida como fonte de educação, desenvolvimento e saúde. E a regra não muda mesmo em um campeonato, seja ele nacional ou internacional. Portanto, embora tenha patrocinadores e uma carreira no skate, a Rayssa não estava desempenhando uma atividade profissional em Tóquio. É extremamente importante diferenciar a prática de esportes do trabalho laboral”, explica.

Impactos do trabalho infantil

De acordo com a ministra do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Kátia Arruda, coordenadora do Programa de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo a Aprendizagem da Justiça do Trabalho, “está na hora de compreender que toda criança é nossa criança e o mal que se faz com a exploração do trabalho infantil afeta toda a sociedade, com grave repercussão no nível educacional, no desenvolvimento físico e psicológico e, principalmente na qualidade de vida desses meninos e meninas. É preciso que o exercício de direitos e de solidariedade comece pela proteção de nossas crianças e jovens”.

Para Márcia Chagas, pedagoga e professora de ensino infantil, o ECA é regularizado de forma que mesmo quem seja menor de idade só possa trabalhar caso esteja com os estudos em dia. Portanto, qualquer mudança no estatuto não deve se apoiar somente à idade, mas ao meio social das crianças e dos adolescentes.

“Mesmo com o ECA, é notável a negligência que existe no tratamento das crianças. E, em época de pandemia, no qual a impossibilidade de comparecer às escolas é prejudicial ao seu desenvolvimento educacional e social, e o cenário de vulnerabilidade é ainda maior, essas crianças precisam de ainda mais suporte e acompanhamento para ter uma infância saudável. Vemos nos últimos anos projetos para flexibilizar o ECA, revogar a Lei da Palmada, mas não é vista a boa vontade para compreender o impacto emocional, físico e mental do trabalho infantil”, diz.

Os números do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde mostram o quanto o trabalho precoce é nocivo: entre 2007 e 2019, 46.507 crianças e adolescentes sofreram algum tipo de agravo relacionado ao trabalho, entre elas, 279 vítimas fatais notificadas. Entre as atividades mais prejudiciais, está o trabalho infantil agropecuário: foram 15.147 notificações de acidentes com animais peçonhentos e 3.176 casos de intoxicação exógena por agrotóxicos, produtos químicos, plantas e outros.

Um estudo inédito publicado em maio do ano passado pelo FNPETI revela ainda que mais de 580 mil crianças e adolescentes de até 13 anos trabalham em atividades ligadas à agricultura e à pecuária, que estão na lista das piores formas de trabalho infantil. A pesquisa teve como base o Censo Agropecuário de 2017, divulgado pelo IBGE em 2019. Apesar da redução obtida desde 2006, quando o número era de mais de 1 milhão, com a Covid-19, o trabalho infantil agropecuário também pode voltar a crescer. 

Para a secretária executiva do FNPETI, Isa Oliveira, a luta contra o trabalho infantil apresenta desafios ainda maiores no contexto da pandemia. “Crianças e adolescentes estão ainda mais vulneráveis, o que exige do Estado brasileiro medidas imediatas e eficazes para protegê-las do trabalho infantil e proteger suas famílias”, finaliza.

Por Bruno Piai