No dia 22 de fevereiro, foram resgatados em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, mais de 200 homens em situação análoga à escravidão. O caso, que contou com uma operação realizada por vários órgãos – Polícias Federal (PF) e Rodoviária Federal (PRF), Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), gerou repercussão ao expor a situação de trabalhadores submetidos a “condições degradantes” em alojamentos instalados. A eles foram prometidos emprego temporário, refeições pagas e salários de até R$ 4 mil. Sua função era a coleta de uvas para vinícolas locais.
Os trabalhadores alegaram enfrentar jornadas de trabalho que chegavam a 15 horas diárias. Além disso, segundo eles, agressões com choques elétricos, spray de pimenta e ameaças de morte faziam parte da rotina. De acordo com a apuração do MTE, as vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton terceirizavam os serviços com a empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio a Gestão de Saúde LTDA.
Um dos gaúchos que trabalhava na colheita deu detalhes do dia a dia e do alojamento. Em entrevista ao TAB UOL, ele relatou que apenas os empregados baianos foram alvo das agressões. “Nós do Sul não apanhávamos”, contou.
O homem, que não teve a identidade revelada, revelou que durante a madrugada presenciou ao menos quatro seguranças entrando no quarto ao lado e agrediu um grupo de trabalhadores vindos da Bahia. A agressão aconteceu após um deles denunciar em vídeo nas redes sociais as condições do uniforme que recebia diariamente para a colheita de uva, completamente encharcado.
Em notas à imprensa, as vinícolas repudiaram o ocorrido e manifestaram que estão tomando as medidas cabíveis para prestar apoio aos colaboradores e aos seus familiares. A empresa de terceirização, por sua vez, declarou que “seus administradores esclarecem que os graves fatos relatados pela fiscalização do trabalho serão esclarecidos em tempo oportuno, no decorrer do processo judicial”.
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Brasil da escravidão?
O caso ocorrido na cidade gaúcha não é isolado. Nos últimos 10 anos, as denúncias de trabalhadores em condições análogas à escravidão mais do que dobraram no Brasil. De 857 em 2012, o registro chegou a 1.973 no ano passado. De acordo com o MPT, apenas três estados não registraram casos de trabalho escravo em 2022: Alagoas, Amapá e Amazonas.
A grande maioria das ocorrências foi identificada em Minas Gerais, com 1.070 trabalhadores na situação. O estado, inclusive, lidera o ranking desde 2013. Vale destacar que os setores que mais apresentam denúncias de exploração em cenário nacional são a colheita de cana-de-açúcar, tarefas de apoio à agricultura, produção de carvão vegetal e cultivo de alho e café.
Apesar das denúncias terem aumentado, os resgates estagnaram. Enquanto em 2012 um total de 2.775 pessoas foram resgatadas, no ano passado, apesar do aumento das denúncias, os resgates libertaram 2.575 trabalhadores em 462 operações de fiscalização.
“Enquanto não houver efetivamente uma preocupação de evitar, e não simplesmente corrigir, problemas trabalhistas, sua solução reativa pode ser tão cara e pesada que a empresa não suportará pagar. Além das questões psicossociais que atingem os trabalhadores na própria condição de seres humanos, o que é deplorável, as empresas envolvidas talvez nunca mais se recuperem do dano causado ao bem mais valioso e maior que todo o seu patrimônio físico: sua imagem. O dano reputacional, neste caso, é incomensurável”, diz José Eduardo Gibello Pastore, sócio do Pastore Advogados.
Para o MPT, o trabalho escravo é definido como a condição degradante de trabalho, em que o trabalhador é submetido a jornadas exaustivas, a condições insalubres e a restrições à sua liberdade. Segundo dados do Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil, desde 2000, mais de 55 mil trabalhadores foram resgatados em todo o país.
As condições de trabalho escravo muitas vezes estão relacionadas à precarização do trabalho, à falta de fiscalização e ao descumprimento das leis trabalhistas. Os trabalhadores em situação análoga à escravidão são geralmente pessoas vulneráveis, como migrantes, trabalhadores rurais e mulheres, que são aliciados com promessas de trabalho e salários justos, mas acabam sendo submetidos a condições degradantes.
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Como denunciar
De acordo com a advogada trabalhista Ana Paula Souza, embora a maioria das denúncias de trabalho análogo à escravidão estejam relacionadas ao setor rural, é necessário reforçar que ela pode ser encontrada em qualquer atividade econômica.
A especialista conta que cenários assim são cada vez mais comuns e que relatos de pessoas que acreditam viver tal panorama – ou que conhecem alguém que pode estar em tal situação – devem ser levados a sério, pois mesmo que não haja o trabalho escravo em si, provavelmente há alguma irregularidade.
“É complexo identificar casos de trabalho escravo porque normalmente eles são velados. Em casos domésticos, por exemplo, não é incomum que profissionais em situação de escravidão, normalmente mulheres e negras, sejam caladas, trancafiadas, ameaçadas ou até mesmo agredidas. Em muitas situações elas passam anos sem sequer sair de dentro da casa dos patrões. Em outras, elas não sabem que estão vivenciando um caso de escravidão”, diz. “No ocorrido das vinícolas, foram necessárias fugas para que a situação começasse a vir à tona. Não estava exposto aos olhos do público”, acrescenta.
Para denunciar, Ana Paula explica que deve haver o preenchimento de um formulário no Sistema Ipê (que pode ser acessado por aqui). O denunciante tem a opção, também, de comparecer presencialmente a uma unidade do Ministério Público do Trabalho.
“Há ainda outras alternativas que são o Disque 100, responsável por atender violações de Direitos Humanos, e as Superintendências Regionais do Trabalho. As denúncias podem ser anônimas. Com o cenário de crise econômica e ausência de auditores fiscais, muitas companhias se sentem à vontade para ir contra os direitos humanos em prol de seus lucros. Mas as denúncias devem ser feitas e, seja a curto, médio ou longo prazo, elas levam sim a algum lugar”, diz.
Professor de Direito Penal do Centro Universitário de Brasília (CEUB), Victor Quintiere aponta que a atuação da Justiça no combate ao trabalho escravo foi reforçada, em 2015, com a criação pelo CNJ do Fórum Nacional do Poder Judiciário para Monitoramento e Efetividade das Demandas Relacionadas à Exploração do Trabalho em Condições Análogas à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas (Fontet).
“O Brasil conta com instrumentos legais, estaduais e federais, para coibir as diversas formas de escravidão em território nacional. A mais utilizada ainda é o artigo 149, do Código Penal, que prevê reclusão, de dois a oito anos, e multa,” explica.
O docente do CEUB acrescenta que, nesse caso, os infratores estão sujeitos à pena correspondente às violências impostas às vítimas, conforme estabelecida na Lei 10.803/2003. Ele frisa que de acordo com Artigo 149, a pena será aumentada também quando o crime for cometido contra a criança ou o adolescente e incluir preconceito de raça, etnia, religião ou origem.
Por Bruno Piai