O conceito de nomadismo digital ganhou, nos últimos anos, tons “romantizados”. Quem não se empolga com a ideia de poder trabalhar de qualquer lugar do mundo? Imagine terminar o expediente e ter à disposição a calmaria do campo ou uma praia sem a agitação das primeiras horas do dia.
Além disso, igualmente tentador é a ideia de poder trabalhar para empresas de outros lugares do mundo e, quem sabe, até mesmo receber o salário em dólar ou euro. Tudo isso sem precisar sair do Brasil. Contudo, será que é tudo tão simples assim? Por trás dos aparentes benefícios, há também desvantagens? Vamos entender um pouco melhor o nomadismo digital.
Como é ser um nômade digital?
Casada com um atleta de vôlei, a advogada Manoele Krahn (foto abaixo), sócia do escritório Pineda e Krahn, de Curitiba, tem uma rotina agitada. Por conta da profissão do marido, ela já morou na Polônia, na Turquia e no Japão. O que seria, em teoria, um problema em relação ao seu trabalho, logo foi contornado pelas facilidades que a tecnologia traz.
“O processo foi sendo feito aos poucos, no início, por não saber que poderia dar certo, minhas viagens não eram longas. O começo foi difícil porque nossa estrutura não era voltada para o acesso remoto. Minhas mudanças começaram em 2012, ainda não se falava sobre reuniões on-line de forma tão natural como hoje. Depois que estruturamos nossos arquivos e sistemas para acesso remoto, porém, as coisas fluíram muito bem.”
Para a nômade digital, o impacto da pandemia foi determinante para a normalização da prática. Segundo ela, por mais que já fosse possível, por exemplo, realizar reuniões online, a prática ainda não era tão comum. Com a Covid-19 sendo um catalisador para muitas empresas replanejarem sua cultura organizacional e modelo de trabalho, a rotina profissional a distância ganhou força.
“Jamais passou pela minha cabeça que eu poderia gerenciar um escritório e trabalhar normalmente não estando pessoalmente na sede do escritório. Morar fora de Curitiba não fazia parte dos meus planos. A pandemia forçou a adaptação dos tribunais ao acesso digital”, destaca a advogada. Vale destacar que, mesmo com a flexibilização das normas de segurança em relação ao coronavírus, muitas audiências seguem sendo realizadas a distância.
Contudo, nem tudo são flores no nomadismo internacional da especialista jurídica. Pela significativa diferença de fuso horário entre Brasil e Japão, algumas madrugadas foram dedicadas a reuniões e audiências marcadas para o período da tarde por aqui. “Isso dificulta um pouco. Mas, nestes momentos conto com o apoio da equipe do Brasil. Além disso, não há como explicar a possibilidade de conhecer profundamente outras culturas ao mesmo tempo em que você trabalha normalmente no seu país. É realmente um privilégio”, afirma.
A experiência de Manoele inspirou e transformou a cultura interna do escritório Pineda e Krahn. O protocolo do escritório é que cada advogada tenha autonomia, mas responsabilidade sobre as suas tarefas. A sócia Maria Fernanda Messagi, por exemplo, vive em Curitiba, mas recentemente optou por passar dois meses na Inglaterra com a irmã, mantendo sua rotina de trabalho no digital.
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De acordo com Danilo Veloso, diretor comercial da SEDA College, “há muito mais vantagens do que desvantagens em permitir que profissionais possam operar de qualquer lugar do mundo. Dentre elas, a qualidade de vida é, sem dúvidas, um dos maiores benefícios, com maior liberdade, com maior liberdade de operar em qualquer lugar do mundo, desde que se tenha acesso à internet. Muitos ainda podem criar uma nova rotina para trabalhar os horários em que se sentirem mais à vontade, aumentando assim sua produtividade”.
O executivo reforça que, embora não seja possível para todas as profissões a adesão ao trabalho a distância e, consequentemente, ao nomadismo digital, para profissionais que podem atuar remotamente a flexibilidade vem se tornando cada vez mais uma prioridade.
“A tendência é tão grande que um estudo divulgado pela Revelo em parceria com o Estadão mostra que 69% dos respondentes afirmaram valorizar mais a flexibilidade de horário e a possibilidade de home office do que um aumento de salário. Como justificativa, ter um maior tempo de lazer para si mesmo foi um dos principais influenciadores, evitando desgastes de locomoção e trânsito, por exemplo”, pontua Veloso.
Por trás da legislação
Do mesmo modo que muitos brasileiros buscam empresas de fora do país, o contrário também ocorre. Em janeiro deste ano, o Brasil regulamentou o visto para nômades digitais internacionais. Segundo a resolução, a residência tem permissão que dura por até um ano e pode ser renovada pelo mesmo período. É considerado nômade digital, segundo a lei do país, “o imigrante que, de forma remota ou com a utilização de tecnologias da informação e de comunicação, seja capaz de executar no Brasil suas atividades laborais para empregador estrangeiro”.
Entretanto, de acordo com a advogada Maria Lúcia Benhame, sócia do escritório Benhame Sociedade de Advogados, há alguns pontos que não podem ser ignorados por trás da romantização sobre o teletrabalho e o nomadismo digital. Em artigo para o RH Pra Você, a especialista destaca, primeiramente, que de acordo com pesquisa do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre), somente 17,8% dos trabalhadores teriam condições mínimas de estrutura para trabalhar remotamente.
Maria Lúcia esclarece que duas situações importantes ainda não foram reguladas A primeira delas diz respeito ao empregado brasileiro, que reside no Brasil e trabalha em uma empresa no país, mas que por conta própria decide se mudar para outra nação. A segunda é referente às empresas brasileiras que querem contratar estrangeiros residentes no exterior como empregados.
“Nenhuma dessas hipóteses está regulada no Brasil. E todas envolvem questões fiscais, previdenciárias, de regularidade de trabalho, de benefícios, de isonomia, etc., sem uma solução prevista em lei”, destaca a advogada, que acrescenta:
“A primeira hipótese é a mais comum em vários ramos de empresas. Muitas se depararam com empregados morando fora do país sem nem mesmo terem sido avisadas, quando começaram a pensar em trabalho híbrido, ou ainda em outras situações como reuniões, problemas com equipamentos e outros. É claro que, na maior parte das vezes, isso não é má-fé, mas é um descompasso entre a visão do anywhere work e as legislações nacionais, especialmente as trabalhistas e fiscais”, explica.
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Uma vez que o colaborador reside em outros países, há uma série de novas preocupações às quais o negócio deve se atentar, assim como o próprio. “Muitas pessoas deixam o Brasil para ter uma experiência nômade e não sabem que, passados 12 meses fora do país, elas deixam de ter residência fiscal por aqui. Isso muda toda a incidência de impostos em seus ganhos nesse território. Há riscos de ter que pagar impostos no Brasil e no exterior desde o primeiro mês. A previdência social não dá cobertura para o brasileiro no exterior”, escreve a advogada.
Pensando nas movimentações nacionais, o advogado trabalhista Felipe Meireles esclarece que, por mais que seja interessante para o colaborador poder se deslocar por diferentes locais para desempenhar o trabalho a distância, é fundamental que a organização sempre seja comunicada, especialmente por conta das obrigações que ela tem a seguir com o funcionário.
“O teletrabalho consta em lei, no Brasil, desde 2017. E recentemente nós tivemos a MP do trabalho híbrido. O fato é que tudo que envolve o trabalho a distância, em contratações formais, deve constar em contrato, como a ajuda de custo com internet, reembolsos de despesas, fornecimento de equipamentos. O problema do anywhere office pode estar na segurança, tanto de dados quanto laboral. Se a empresa se responsabiliza pelo envio de equipamentos de segurança, o empregador conseguirá utilizá-los nas diferentes localidades de onde trabalha? Será que algumas conexões wifi não podem facilitar a invasão de sistemas e o acesso de dados confidenciais por parte de terceiros? É preciso ter cuidados com a ‘moda’ do trabalho em qualquer lugar. Uma série de pontos exige atenção tanto do empregador quanto do empregado”, finaliza.
Por Bruno Piai