Há limites para a liberdade de expressão? Nos últimos dias, não há outro assunto que esteja tão em evidência dentro dos trending topics brasileiros do Twitter. Ditando o ritmo das discussões dentro da plataforma, o youtuber Bruno Ayub (capa), popularmente conhecido como Monark, trouxe o questionamento – e uma enxurrada de polêmicas – à tona ao se posicionar em defesa da liberdade absoluta de expressão. As perguntas, opiniões e afirmações do apresentador do Flow Podcast fizeram com que milhares de pessoas – entre anônimos e famosos – se manifestassem a favor ou contrariamente, apimentando o debate na rede social.
Não é de hoje que as postagens do youtuber mobilizam os usuários das redes. Adepto de opiniões fortes, Monark volta e meia levanta discussões – não só no Twitter, mas também no próprio Flow – que acirram os ânimos nas plataformas. A da vez começou a ganhar força na última quarta-feira, quando o apresentador reclamou publicamente do YouTube criticando a postura do site em vetar canais que propagam fake news referentes à vacina da Covid-19.
Ao responder seguidores que o questionavam e em novas postagens, Monark fez questionamentos como “ter uma opinião racista é crime?” e “Mentir é um direito humano, ser ignorante é um direito humano, ofender é um direito humano”, além de defender o Presidente da República após o Facebook e o Instagram removerem a live em que Jair Bolsonaro associava a vacinação ao vírus HIV e à AIDS.
Diante disso, o RH Pra Você convidou Artur de Souza Marques, especialista em Direito Empresarial e Direito Trabalhista, e advogado com mais de 10 anos de experiência, para falar a respeito das falas do youtuber e responder, afinal, sobre quais são os limites da liberdade de expressão.
Até onde vai a liberdade de expressão?
Marques: Liberdade de Expressão é um assunto que sempre gera debate. Em rápido contexto, o conceito remete à garantia de cada indivíduo poder expressar de forma livre aquilo que ele sente, pensa ou deseja opinar. Quando pensamos no Brasil, a liberdade de expressão, que consta nos artigos IV e IX do artigo 5º da Constituição de 1988, representa uma importante conquista, especialmente pensando que até 1985 o país esteve sob um regime militar que promovia censura.
Quando se fala em limite, o “x” da questão está no momento em que um outro direito é atacado. Ao dizer que “mentir é um direito humano”, podemos pensar em situações que em nada causam prejuízo individual ou coletivo. Você não será preso por contar uma mentira leve a um amigo para recusar o convite para uma festa. Contudo, há situações que podem ter consequência. A mentira é passível de punição legal quando causar perdas ou danos às partes envolvidas. Por exemplo, segundo o artigo 342 do Código Penal, um indivíduo declarado culpado por falso testemunho pode pegar de dois a quatro anos de prisão, além de arcar com uma multa. Ao causar perdas ou danos, você está cruzando a linha de outros direitos.
Quanto ao “ofender é um direito humano”, o ponto é: se ofender alguém, esteja pronto para arcar com as consequências. É bem verdade que as redes sociais banalizaram as ofensas. Há tantas ofensas dentro do ambiente virtual – e não só nele – que nem mesmo as pessoas que se sentem ofendidas dariam conta de processar todos aqueles que o fazem. Ofensas podem se qualificar como calúnia, difamação, injúria, danos morais, assédio, entre outros, a depender da situação em questão.
E aqui vai uma ressalva importante, que é a mobilização jurídica em torno de ofensas manifestadas nas redes sociais. Curtir ou repostar comentários e opiniões ofensivas também podem gerar punição. Sabe aquele comentário extremamente ofensivo que alguém faz sobre a empresa que você trabalha? Se você, colaborador, curti-lo, a empresa descobrir e resolver demiti-lo por justa causa, há chances de você perder o processo caso leve o caso à Justiça. E a empresa pode, ainda, cobrar indenização se sentir-se difamada, caluniada ou injuriada. É preciso ficar atento.
Para ficar claro o “direito de ofender”. Imagine que você está em casa assistindo TV com sua família e, ao passar pelos canais, dá de cara com um apresentador pelo qual você não tem apreço. Se você proferir, em frente de sua família ou no seu íntimo palavras ofensivas em relação a ele, é provável que você não sofrerá consequência. Sua esposa, marido, filho(a) ou afim não tem a obrigação de ligar à polícia denunciando o ato. Porém, se as ofensas forem levadas a público, não há o que impede a parte ofendida de te processar e, a depender do ocorrido, sua ofensa pode terminar em punição legal.
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Palavras podem matar?
Marques: Imagino que ele tenha feito a pergunta no sentido literal, enquanto o público, pela imensa maioria de votos no “sim”, levou em consideração diferentes contextos.
Primeiramente, é claro que no sentido absolutamente literal, uma fala não mata. Agora, ampliando o sentido, o que é dito pode, sim, terminar em morte e, por consequência, ter alguém judicialmente responsabilizado. Instigar alguém a cometer um crime, um atentado à própria vida ou uma ação que cause danos à sociedade pode ser considerado crime. Se um indivíduo disser várias vezes para um outro tirar sua vida e o ato se consumar, aquele que instigou pode, segundo o Art. 122 do Código Penal, pegar de dois a seis anos de reclusão.
O famoso criminoso americano Charles Manson, por exemplo, não matou ninguém, porém a ideologia que criou influenciou, segundo o júri, seus “seguidores” a cometerem assassinatos. Mais um exemplo: em 2014 uma dona de casa foi espancada no Guarujá (SP) porque criaram boatos sobre ela nas redes sociais que diziam que a mulher praticava magia negra. Quem criou a mentira foi levado à Justiça.
É preciso ter muito cuidado com a crença na liberdade absoluta de expressão. Toda sociedade desenvolvida carece de regras.
Censura contra o presidente?
Entenda o fato: na live do dia 20 de outubro, Jair Bolsonaro divulgou, com base em notícias dos sites Stylo Urbano e Coletividade Evolutiva, que o Reino Unido criou relatórios que dizem que a vacinação contra a Covid-19 deixa as pessoas imunizadas mais vulneráveis à AIDS.
O Departamento de Saúde e Assistência Social do Reino Unido afirmou que a informação se trata de inverdade e, pela primeira vez, o Facebook e o Instagram removeram das plataformas uma live do presidente. Na sequência o YouTube fez o mesmo. “Nossas políticas não permitem alegações de que as vacinas de Covid-19 matam ou podem causar danos graves às pessoas”, declarou um porta-voz do Facebook.
Marques: A remoção não deve ser considerada censura. Primeiro, porque atenta contra a saúde e o bem-estar coletivo, uma vez que o presidente instiga o público a temer a vacina e a evitá-la. Segundo, porque, se fere as regras estipuladas pelas plataformas, elas estão no direito de banir o conteúdo. O que se pode discutir é se as plataformas têm o mesmo critério para todos.
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Opinião ou crime?
Marques: Aqui nós podemos usar a lógica do que foi respondido ao longo das outras questões. Ninguém pode ser punido por um pensamento, por mais infeliz que ele seja. Contudo, uma vez que ele é publicamente manifestado, ele pode entrar na esfera criminal por ser discriminatório.
Mas é importante deixar algo bem explicado: não existe “opinião racista”. É crime e ponto. Pode ser crime de racismo ou de injúria racial, mas uma vez que a “opinião” é manifestada, há evidente discriminação.
Não foi só o Monark
Apesar do evidente holofote que o youtuber está recebendo nas redes sociais, a linha do “opinião ou discriminação” tem outro personagem também em destaque, o jogador de vôlei do Minas e da Seleção Brasileira, Maurício Souza.
Após a editora DC Comics lançar uma publicação na qual o atual Superman, Joe Kent, revela ser bissexual, o atleta usou seu Instagram para se posicionar contra. A postagem foi duramente criticada nas redes sociais e fez com que os patrocinadores do Minas cobrassem do clube uma ação em relação ao posicionamento do jogador, considerado homofóbico.
Na época da postagem, Maurício Souza se envolveu em uma troca de farpas com o colega de seleção, Douglas Souza, jogador assumidamente homossexual.
Nesta terça-feira (26), Maurício Souza foi multado pelo clube e pediu desculpas em seu Twitter. Vale destacar que a publicação contra a HQ foi feita no Instagram com o atleta tendo centenas de milhares de seguidores, enquanto a retratação, no Twitter, foi realizada em conta que possuía, até o momento, pouco mais de 50 seguidores, o que gerou muitas críticas contra o jogador.
“Pessoal, após conversar com meus familiares, colegas e diretoria do Clube, pensei muito sobre as últimas publicações que eu fiz no meu perfil. Estou vindo a público pedir desculpas a todos a quem desrespeitei ou ofendi, esta não foi minha intenção”, escreveu o jogador, em retratação”, disse Maurício Souza na retratação.
Ao portal O Globo, o técnico da Seleção Brasileira masculina de vôlei, Renan Dal Zotto, declarou que “Quero deixar bem claro que nunca aconteceu nada parecido com isso na seleção. Vou me inteirar melhor do que está acontecendo porque não sou assíduo das redes sociais e não estava acompanhando no detalhe. Mas digo que isso que está acontecendo agora é tudo o que não queremos no nosso esporte”.
Entre os atletas do esporte, houve quem ficou ao lado de Maurício Souza, como Sidão e Wallace, companheiros dele e de Douglas na seleção de Dal Zotto, enquanto as jogadoras Sheilla Castro, Carol Gattaz e a ex-líbero Fabi Alvim manifestaram apoio a Douglas Souza.
No blog Lei em Campo, do UOL, o jornalista Gabriel Coccetrone trouxe a opinião advogada Mônica Sapucaia, especialista em Direitos Humanos, sobre o caso. “Essa ideia de que ser homofóbico, racista, sexista, antissemita é uma opção, um ponto de vista, tem sido desastrosa para a consolidação dos Direitos Humanos. (…) Observamos que os patrocinadores entenderam que só faz sentido patrocinar um time que encante a pluralidade e não que reafirme privilégios e estereótipos”, disse.
Atualização – 27/10 – 16h14
Em meio à polêmica envolvendo o atleta Maurício Souza, há pouco o Minas Tênis Clube usou suas redes sociais para divulgar que o jogador não integra mais o elenco do time.
Foto de capa: Flow/Reprodução
Bruno Piai