Em uma rápida navegação pelo campo de vagas do LinkedIn, encontramos um denominador comum na descrição de algumas oportunidades em áreas tão distintas. “Pessoa Analista de CRO”, “Pessoa Redatora de Conteúdo”, “Pessoa Especialista em RH”, “Pessoa Consultora Comercial” – esses são alguns entre tantos outros exemplos.

O tal denominador comum, que você bem notou se tratar da palavra “pessoa”, chega com o objetivo de conferir uma manifestação mais inclusiva, representando mulheres, homens e pessoas que não se identificam dentro desse espectro binário. A lógica é usar termos que não reforcem o masculino genérico.

No guarda-chuva da inclusão, aparece a linguagem neutra que, como o nome adianta, almeja criar um gênero neutro na língua portuguesa. Do ponto de vista gramatical, as primeiras discussões envolviam trocar “o” e “a”, que em português são vogais-morfemas que definem o gênero das palavras, para “x” ou “@”. Por exemplo: “você é engraçada” ficaria “você é engraçadx” ou “engraçad@”. Esses sistemas foram contestados por serem exclusivamente escritos e atrapalharem a leitura de pessoas com deficiência visual ou neurodiversas.

O debate avançou para o uso da vogal “e” no final de palavras. Por exemplo, “você é meu namorado” ficaria “Você é mi namorade”. As vogais “e”, “i”, e “u” são mais bem aceitas, em especial o “e”. Em relação aos pronomes neutros, nos deparamos com o uso de “ile” e “dile” ou “elu” e “delu”.

A verdade é que o debate já entrou no rol de assuntos polêmicos – aqueles que dividem a população em embates calorosos. Para se ter uma ideia, o uso do gênero neutro na língua portuguesa é tema de projeto de leis em 19 estados brasileiros e no Distrito Federal, de acordo com levantamento feito pela Agência Diadorim. No total, 34 propostas têm por objetivo impedir a variação gramatical para além do gênero feminino e masculino.

Linguagem neutra e/ou inclusiva: onde estamos e para onde vamos?

Segundo o professor Eduardo Calbucci, mestre e doutor em Linguística pela USP, há de se tomar cuidado ao tratar do tema para não diminuir ou menosprezar a sua importância. “Existem duas coisas que se conversam. A primeira são os preconceitos de todas as ordens. Vivemos numa sociedade, infelizmente, preconceituosa. Temos preconceito de gênero, identidade de gênero, racial, étnico. Diante disso, é um dever nosso combater todos os preconceitos. A dúvida que eu tenho, e coloco como linguista, é justamente se a linguagem reflete esses preconceitos ou se ela gera”, pondera.

Na visão do professor, a impressão é que às vezes o debate que vem sendo feito coloca as coisas em uma ordem um pouco invertida. “É como se usar uma linguagem menos sexista, não-binária ou, como dizem, neutra, a gente evitasse os preconceitos e, infelizmente, isso não é verdade. As pessoas podem utilizar uma linguagem dentro desses padrões e continuar sendo preconceituosas”.

Assim, a mudança de atitude seria anterior à mudança de linguagem. “A linguagem acompanha as transformações do mundo, e não ao contrário. Se fosse assim, a gente acabaria com o preconceito simplesmente fazendo uma lista de palavras proibidas, como se as ideias representadas pelas palavras fossem, de uma hora para outra, desaparecer”.

De acordo com Calbucci, toda linguagem marca uma visão de mundo e mostra a nossa vinculação a uma formação discursiva. Conforme sintetiza, “falar é, o tempo inteiro, opinar”. Quando questionado pelas pessoas, como linguista, se é possível a adoção da linguagem neutra no cotidiano, a resposta é simples: “as pessoas estão usando?”

“Hoje o que percebemos é que essa linguagem é uma variedade linguística do português. Ela é usada por um determinado grupo social, da mesma forma que há certas expressões que são usadas por cantores de hip hop, advogados, jovens em cidades de praia etc. Ela é uma variedade, será que um dia pode se tornar tão generalizada a ponto de ser incorporada a todos os usuários? Pode acontecer, esse é um fenômeno que não temos controle. Não conheço nenhuma transformação linguística que ocorreu simplesmente por vontade de alguém, é uma coisa que se consolida, e às vezes não”.

Em Portugal, expressões neutras e inclusivas devem ser usadas em certidões e registros civis, por recomendação do governo, desde o ano passado. Em países como Argentina e Chile, o uso do “e” para marcar a neutralidade de gênero (como em “amigues”) tem se disseminado. A Faculdade de Ciências Sociais de Buenos Aires, por exemplo, aprovou o uso da linguagem neutra institucionalmente em 2019.

Em inglês, tanto o britânico Oxford Dictionary quanto a editora norte-americana Merriam-Webster reconhecem o pronome “they”, no singular, como a maneira de fazer referência a pessoas não binárias – a palavra, inclusive, foi eleita o verbete do ano em 2019.

E o mercado de trabalho diante disso?

Fato é que a mobilização pelo uso da linguagem inclusiva e/ou neutra tem cruzado as fronteiras da internet, onde encontrou um terreno fértil, e pousou em iniciativas também corporativas, a exemplo das descrições de vagas citadas no início do texto e de organizações que passam a olhar com mais atenção para o tema.

Para Bruna Ferreira Lucena, Coordenadora de Projetos da Transcendemos, a linguagem inclusiva não deve ser só um “check” na lista de metas de uma empresa, a organização precisa pensar em estratégias e como estruturar um processo de diversidade e inclusão que inclua, de forma intrínseca, a linguagem inclusiva por meio de treinamentos, mudança de políticas e processos.

Em sua opinião, à medida que diversidade e inclusão têm se tornado uma demanda urgente e fundamental no mercado de trabalho, as empresas têm buscado pouco a pouco se adaptar e adotar formas e ferramentas para tornar os espaços, aprendizados e linguagens mais inclusivas, a exemplo de treinamentos sobre comunicação inclusiva, produção de materiais inclusivos e apoio comunicacional interno e externo.

“Para introduzir o tema junto aos colaboradores, as organizações podem começar fazendo uso de construções textuais sem marcadores de gênero. Por exemplo, ao invés de ‘sejam bem-vindos’, há a possibilidade de se escrever ‘que bom vocês estão aqui’ ou ‘Desejo que todas as pessoas aqui presentes sejam bem-vindas’. A adoção de mudanças na forma como nos comunicamos é um elemento-chave para promover uma mudança cultural bem mais profunda tanto nas empresas quanto na sociedade”, opina.

Processo de mudança

Para Ronaldo Ferreira Junior, sócio-diretor da um.a Diversidade Criativa, cuidados, como os citados acima, criam pontes para a sensibilização positiva de outras pessoas e gera um alinhamento com quem já está praticando a inclusão no discurso. “Mas nada disso adianta se antes as pessoas não forem sensibilizadas sobre a importância, as vantagens e a proteção que a diversidade e inclusão trazem para nossas vidas e para os negócios”, pontua.

Dessa forma, acredita que a linguagem inclusiva não deve ser uma obrigação imposta, mas uma discussão que se propõe a incluir pessoas que não se identificam com os gêneros feminino e masculino.

“E não é só isso. A linguagem neutra fala sobre relações de poder. Sobre tornar visível uma parcela da sociedade que é sempre posta à margem. Não é uma simples mudança ortográfica, mas uma mudança de perspectiva. O mundo nos pede generosidade e empatia, por isso a linguagem inclusiva não é uma questão de aceitar ou não. É uma questão de entender”, afirma.

Calbucci, mestre e doutor em Linguística, concorda que o caminho não é o de imposição. No caso das empresas, é necessário que reflitam permanentemente sobre isso e que as pessoas desse universo sejam incluídas na discussão sobre qual é a melhor forma de lidar com a linguagem.

“Que seja uma reflexão permanente. Não existe alguém que decide como é essa linguagem. É o uso que determina. Está em constante transformação. A língua é dinâmica. Não é fazer o glossário uma vez e pronto, e, sim, criar uma discussão permanente. Essa reflexão mais ampla inclui também sobre o que seria a linguagem neutra, inclusiva ou não sexista”, finaliza.

Por Gabriela Ferigato