A chamada cultura do cancelamento se tornou uma “febre” nas redes sociais. Com a sociedade em profunda transformação – especialmente com a quebra de costumes que perduraram durante muito tempo e com a intolerância mais acentuada a preconceitos – e também com a acirrada polarização de ideias, o termo “cancelar” ganhou força como um recurso de maior impacto para adequar as pessoas às mudanças.
Porém, a iniciativa rapidamente ganhou tons polêmicos uma vez que nem sempre é identificável que o cancelamento tem caráter educacional ou instrutivo, mas destrutivo. Em qualquer mídia social é fácil notar a promoção de linchamentos virtuais a pessoas anônimas, públicas e a marcas por falas erráticas ou ações que vão contra as ideias atualmente promovidas.
Hoje, para facilitar a compreensão sobre a pauta, talvez o Big Brother Brasil (BBB) seja um dos melhores exemplos. Vigiados 24 horas por dia durante meses, os participantes devem a todo instante se preocupar não só com o jogo e suas regras, mas com uma cartilha a ser seguida para que não haja o cancelamento por parte do público.
Atitudes negativas e comentários infelizes, mesmo quando é nítido o desconhecimento sobre algum assunto ou a ausência de intenção em causar mal ou transtorno, não passam despercebidos pelo público, que na primeira oportunidade se une em prol de fortes críticas – mesmo quando nem sempre, naquele determinado instante, a parte atacada é capaz de se defender. Algumas são justas e carregam didatismo e ensinamentos, outras são gratuitas com propósito de destruir a reputação.
Há lado bom na Cultura do Cancelamento?
De acordo com o estudo “Cultura do Cancelamento Corporativo”, realizado nos Estados Unidos pela Porter Novelli, 69% dos entrevistados enxergam um propósito no “cancelar”. Para eles, a prática tem o intuito de chamar a atenção para uma ação ou hábito negativo que precisa ser combatido ou corrigido. Portanto, ela não é apenas uma onda de ataques gratuitos para criticar pessoas ou marcas que desagradam.
Ainda segundo o levantamento, as empresas precisam ficar atentas ao poder atual do consumidor. 64% utilizam as redes sociais para promover hashtags ou feedbacks sobre marcas, enquanto 72% se sentem capacitados e empoderados para se manifestar sobre a conduta, os produtos, os serviços, as iniciativas e qualquer outra ação das organizações.
A pesquisa revela que para 34% dos respondentes, o cancelamento é positivo e traz benefícios à sociedade, uma vez que estimula uma reflexão sobre comportamentos negativos. Já para 30% os exageros estão presentes e tal cultura precisa ser reconfigurada ou exterminada, pois não traz nada de positivo.
Diante da exposição e das consequências da cultura do cancelamento – e até da ânsia por vezes existente para cancelar alguém, o que se torna quase uma caça -, como as marcas podem trabalhar para que não sejam afetadas? Para ajudar a responder este e outros questionamentos, o RH Pra Você bateu um papo com a Diretora de Gente e Gestão do Grupo Elfa, Aline Sueth. Confira:
RPV: Aline, na posição de diretora de um grupo que promove soluções em saúde, como você interpreta e analisa a cultura do cancelamento?
Aline: A cultura do cancelamento é um efeito. E que efeito é esse? De poder. Independente de filosofias ou ideologias, raças ou credos, em qualquer grupo que você faz parte, você pode se empoderar. E a cultura do cancelamento vem dessa necessidade de expressar esse poder. Porém, quando a gente fala das causas que motivam essa cultura, os seus vieses, nós precisamos analisar todo o contexto.
Como diretora em gestão de pessoas, eu busco compreender como essa cultura funciona e o que dá tanto poder aos influenciadores. Há pesquisas que mostram que o impacto da venda de um produto, por exemplo, por um influenciador, é 22 vezes maior do que em qualquer outro canal de marketing. As chamadas conversões. O influenciador não apresenta só o produto, ele o vive. Mostra na prática, no dia a dia.
Isso nos remete a algo importante: a questão da realidade, da congruência, tem um peso muito grande na sociedade. Assim como um influenciador tem esse poder para divulgar uma marca, ele tem poder para fazer crescer uma cultura de cancelamento. Ela pode ou não estar sendo usada da melhor maneira, mas é importante, primeiro, entender porque ela acontece, que tem resposta nesse novo comportamento humano de querer que as coisas tenham integridade, conectadas.
Podemos debater se é uma cultura que é ou não lícita, se vale ou não a pena, mas precisamos trabalhar com a ideia de que é um fato, uma consequência.
RPV: É possível, de alguma forma, metrificar esse poder? O quanto o “cancelar” pode ser drástico ou não para um negócio?
Aline: Quando a questão tem a ver diretamente com o seu negócio, com a sua proposta de valor, é muito complexo resgatar a reputação uma vez que houve um cancelamento. Imagine que você esteja em um cinema e aconteça alguma situação com a tela e isso cause ferimentos em alguém. É muito difícil conseguir levar o seu público de novo para aquela sala ou aquele cinema, porque a proposta de valor era o divertimento, a leveza. Para “metrificar”, esse é o ponto de maior importância.
Até para ficar mais claro: imagine que você vá a um restaurante e nele haja algum problema no banheiro ou no ar condicionado. Se a comida for saborosa e te agradar, você vai voltar mesmo com os problemas citados. Porém, se a experiência com a comida for traumática, você não vai voltar para esse restaurante. E se você compartilha essa experiência negativa, ela se propaga. Então começa a ser mais difícil sustentar a reputação.
RPV: Como vocês administram posicionamentos no Grupo Elfa?
Aline: O primeiro passo é que, aqui dentro, cada colaborador passa por um processo de onboarding e media training. É preciso ter muito cuidado não só com a forma como as marcas se manifestam, como também com o modo que as pessoas que a integram o fazem. Nós trabalhamos, inclusive, com termos de conduta, para que não sejam expostas as crenças da Elfa.
Temos treinamentos recorrentes de ética, cultura e convivência, que complementam a questão dos posicionamentos. Além disso, temos acompanhamento de assessoria e marketing. É preciso ter muito cuidado para saber o que falar e como falar. Por termos um tema sensível e por lidarmos com política, a cautela é necessária.
RPV: É o melhor caminho levantar publicamente bandeiras ou escolher lados?
Aline: 94% das pessoas não escolhem um produto somente por sua qualidade intrínseca, mas pela reputação e imagem que a empresa tem. Isso envolve posturas sociais, ambientais, preocupações com causas. Diante disso, mais da metade dos consumidores se fidelizam a marcas. Você se acostuma a uma marca, a torna comum na sua rotina, especialmente quando você acredita não só no que ela oferece como produto ou serviço, mas em seus valores éticos.
Não é uma opção ficar calado. Antes havia o “que não aparecia, não é lembrado”. Hoje, há um certo desejo popular em ver nos outros certo heroísmo, protagonismo. E, naturalmente, calado você não vai se encaixar nessa nova realidade.
Porém, há um ponto muito importante a ser relevado: o foco não é no “quem” ou no “como”, mas no “o quê” e no “porquê”. Assim você não estará atacando as crenças de alguém, a sua forma de pensar.
RPV: E como você adota isso na prática?
Aline: Podemos pensar no caso da vacina contra a Covid-19. Eu preciso, primeiramente, compreender todas formas de tratar a doença. Não é inteligente e estratégico eu chegar e dizer “sou a favor disso ou daquilo” sem antes existir uma comprovação do que realmente vai solucionar o problema. Eu me posiciono a favor de promover todos os esforços realmente efetivos para combater a doença, e a partir do momento que é comprovado o melhor caminho, eu me manifesto em prol dele. Foi totalmente provado que a vacina é a solução? Então eu vou defendê-la.
Isso vale para qualquer questão. Veja outro exemplo: o lockdown. Independente de ser a favor ou não, eu preciso primeiramente entender o porquê daquilo. Meu posicionamento não é em cima da medida em específico, mas de qualquer alternativa que os pesquisadores, cientistas, possam garantir que será efetiva para evitar mortes. As empresas precisam ter a sensibilidade de se posicionar com base no “o quê” e no “porquê”, pois se a escolha for pelo “quem” ou “como”, sempre será uma decisão que vai polarizar. Se torna um Lula x Bolsonaro.
Não é um caminho fácil. Você, nos bastidores, se move conforme o “como” ou o “quem”, porque é inevitável que haja alguma identificação com alguém, com algum lado. Mas isso deve ficar no bastidor. Para fora, seu discurso e dinâmica de interação precisa ser estratégico e, na medida do possível, inquestionável. A comunicação deve ser focada no propósito.
Por Bruno Piai