O ano de 2021 foi marcado por um fenômeno que fez muitas empresas repensarem sua conduta corporativa: a chamada Great Resignation (Grande Renúncia, em tradução literal). O movimento foi reportado em diversos países ao redor do mundo, como China, Alemanha e França, mas foram os números de desligamentos voluntários nos Estados Unidos que mais marcaram o episódio.

Somente nos meses de setembro, outubro e novembro de 2021, por exemplo, mais de 12,5 milhões de trabalhadores se demitiram de seus respectivos empregos na terra do Tio Sam, segundo registros do Departamento de Trabalho. O que mais chamou atenção, porém, foi que, de acordo com levantamentos locais, a grande maioria não tinha um outro emprego garantido.

Em meio às demissões, motivadas pela insatisfação com salário, benefícios, ambiente organizacional, ausência de flexibilidade, entre outras razões, pairou a dúvida se a Great Resignation também chegaria ao Brasil. Em meio às diferentes opiniões de especialistas sobre o tema, o fato é que a taxa de desemprego no país, segundo o último relatório do IBGE, caiu para 9,8% em maio, atingindo 10,6 milhões de pessoas.

Se isso não responde ao questionamento, um compilado feito pela LCA Consultores com informações obtidas no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) coloca luz sobre a questão. Nos últimos 12 meses, o Brasil bateu recorde de pedidos de demissão. O período registrou 18,7 milhões de desligamentos, dos quais quase ⅓ do total (6,1 milhões) foram voluntários.

A onda de fenômenos demissionais, no entanto, não para por aí e não se resume à iniciativa dos colaboradores. Nos últimos meses, startups brasileiras engataram a última marcha dos desligamentos em massa e, em conjunto, demitiram mais de 2 mil pessoas no primeiro semestre do ano. Ebanx, Kavac e Facily (com cerca de 340, 300 e 200 demissões, respectivamente) lideram, por ora, o ranking das empresas que mais promoveram cortes – o que motivou, inclusive, o desenvolvimento de um compilador de demissões em tempo real. A nova pergunta que fica, então, é: onde as empresas estão errando?

Por que tantos pedidos de demissão?

De acordo com Bruno Hora, cofundador da InvestSmart, a pandemia de Covid-19 motivou que muitos profissionais passassem a olhar para o mercado de trabalho de uma outra forma. O executivo pontua que antes da ascensão do novo coronavírus as empresas já começavam a ter dificuldades maiores para atrair e manter bons talentos, especialmente das gerações mais atuais, cuja tendência de “fidelidade” às companhias é menor em relação a outros públicos. Hoje, no “pós-pandemia”, o desafio está ainda mais acentuado.

A média de tempo que um talento se mantém em uma organização é cada vez menor, o que só cresce quando empresas com estruturas organizacionais ultrapassadas ainda mantém a visão de que o salário é o único fator que retém um bom colaborador. Clima e cultura, por muito tempo, foram romantizados, sem que houvesse nenhuma ação ativa das empresas para realizar medições e promover melhorias. Com o efeito da pandemia, no qual pautas como o home office foram aceleradas, ficou claro que muitos negócios não conseguiram se adaptar aos anseios dos colaboradores”, diz.

Bruno Hora, cofundador da InvestSmart

Bruno Hora, cofundador da InvestSmart

Segundo Gabriel Zamboni, head de Recursos Humanos da 7Stars Ventures, uma vez que as demissões não foram evitadas, ao menos serviram de lição para que as companhias começassem a olhar mais para dentro e não apenas para os consumidores.

Ele explica que é determinante as empresas terem um olhar para o seu fit cultural, “visto que a cultura organizacional precisa estar alinhada entre marca e colaborador, pois mesmo em um ambiente com uma cultura ‘forte’, se ela não for aplicada no cotidiano corporativo, resultará em confronto e o colaborador não se sentirá engajado dentro da companhia”.

O profissional de RH, que salienta que as companhias precisam oferecer propósito ao colaborador, deixa claro também que é necessário repensar o modo como as lideranças estão sendo desenvolvidas. É destacável que não são incomuns os casos nos quais bons talentos “se demitem de seus chefes” mesmo quando seus valores estão alinhados ao do negócio.

“Temos no mercado uma onda de líderes jovens, mas que nem sempre são preparados. Vemos como resultado uma liderança que não tem o olhar de sucessão, de capacitação. Às novas gerações se atribui – embora não seja exclusividade delas – à necessidade do envolvimento com a missão, a cultura, o propósito e o desenvolvimento. Se esses pontos não são bem estruturados no dia a dia corporativo, nada mantém os talentos”, elucida.

Na visão de André Diamand, executivo criador do Sexy Canvas, as empresas precisam criar estratégias que as tornem desejáveis. Se antes eram elas quem escolhiam os melhores talentos que fariam a composição de seu time, hoje os papéis se inverteram. Profissionais que vivem uma realidade que dá a eles poder de escolha não hesitam em fazer uma curadoria que vá ao encontro das companhias – de todos os portes – que, de fato, atendam seus novos anseios, como qualidade de vida, flexibilidade e equilíbrio entre vida pessoal e profissional.

Dois anos de pandemia

“Ao invés de buscar ações e propostas momentâneas para impedir a saída de um funcionário – que pode já ter sinalizado o desejo de sair -, as empresas precisam apostar em ações constantes que façam com que o colaborador queira fazer parte dela”, comenta.

Diamand esclarece que os talentos que fazem a diferença para os negócios precisam ser valorizados, pois parte da busca por propósito está em receber o devido reconhecimento por um trabalho que conduza a resultados sólidos. O especialista orienta que as organizações saibam trabalhar a relevância de seus funcionários mais produtivos, engajados e que têm a ambição de crescer junto à companhia.

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Humanização x economia: o que acontece com as startups?

Por questões econômicas internas e internacionais, startups consideradas unicórnios (aquelas cujo valor de mercado ultrapassa a cada do bilhão de dólares) optaram por “estrategicamente”, segundo as próprias, promoverem mudanças significativas em seu quadro de trabalho. Além de movimentações que envolvem a troca ou o reposicionamento de líderes e gestores, as demissões passaram a integrar o pacote de mudanças.

No LinkedIn, uma rápida busca mostra que os colaboradores desligados acrescentaram desabafos aos agradecimentos, com muitos deles manifestando surpresa e frustração tanto com a perda do emprego quanto com o desligamento dos, agora, ex-colegas. Por mais que demissões em massa não sejam movimentos tão incomuns, é natural que causem mobilização e sejam, muitas vezes, interpretados como uma ação que poderia ser evitada.

“A vontade de crescer rapidamente, batendo de frente com os modelos tradicionais, faz com que algumas startups acabem por não olhar com atenção a algumas questões básicas, como a segurança e a sobrevivência da empresa. Um destes pontos é o respeito aos colaboradores”, pontua Diamand, que acrescenta que a visão romantizada que o mercado tem por alguns unicórnios esconde eventuais erros estratégicos que culminam com bons profissionais sendo penalizados. O prejuízo atinge tanto os indivíduos demitidos quanto a reputação do negócio.

“Há startups que ‘amam’ seus colaboradores, constroem ‘famílias internas’, fazem happy hours e oferecem ambientes descontraídos. Em um dia, os funcionários estão felizes. No outro, são repentinamente demitidos. Não são informados sobre a real situação da empresa. Isso gera um clima de total insegurança aos funcionários que permanecem e motiva que busquem novas alternativas de trabalho, pois podem ser os próximos da lista. Humanizar processos significa ter transparência e tornar as pessoas mais participativas não só nas soluções, mas também nos problemas. As startups parecem ainda estar em fase de aprendizado sobre isso.”

André Diamand, executivo criador do Sexy Canvas fala sobre os movimentos de demissão

André Diamand, criador do Sexy Canvas

Diante disso, Zamboni, por sua vez, manifesta que não basta tais empresas receberem significativos aportes por parte do mercado se não tem um planejamento bem definido para utilizá-los. O head de RH aponta que a forma como as empresas lidam com o dinheiro em caixa pode ser um “tiro no pé” quando o crescimento do time é realizado mais por empolgação e vontade de crescer rapidamente do que por estratégia e pensamento a médio e longo prazo.

“A primeira decisão da companhia [após receber um aporte] costuma ser inflar o time. Ou seja, trazer muitos profissionais para que todas aquelas pessoas, juntas, possam cumprir os objetivos. E a partir do momento que nos deparamos com um cenário econômico de capital escasso, começam as demissões. É o movimento mais rápido para se notar uma diferença no balanço da empresa. Mas, ao promover demissões nas quais os colaboradores são pegos de surpresa, mostra-se uma falha na cultura organizacional”, ressalta.

Portanto, Zamboni orienta que as startups, mesmo sob o entusiasmo de acelerar seu crescimento, repensem as estratégias adotadas. “A demissão bate diretamente no propósito dos profissionais e afeta o poder de atração da companhia, o que pode afetar o negócio a médio prazo”.

Nessa linha, Bruno Hora destaca que, por mais que juros altos e a recessão econômica enxuguem o acesso das startups a investimentos e obriguem que elas sejam mais eficientes ao mesmo tempo que tenham times mais enxutos, as demissões em massa não deveriam fazer parte do plano para lidar com os novos desafios encontrados.

Demissões em massa não deveriam existir, pois o feedback de quem sai da empresa é muito rico para a gestão – e para a reputação. O processo de desligamento diz muito sobre a credibilidade e a cultura de uma empresa. Com o tema governança em evidência e com a credibilidade tenho impacto inclusive no valuation do negócio, não existe espaço para ações como essa”, aconselha.

Ainda assim, há a compreensão, segundo Hora, de que o momento de instabilidade financeira pode trazer consequências drásticas a algumas startups. Novas demissões tendem a ocorrer e, uma vez que as empresas não estejam aptas a recorrer a outras soluções, ao menos a clareza de informação deve prevalecer.

“A falha estratégica [de quem precisa demitir] foi não prever o fim de um ciclo econômico com excesso de liquidez. Os indícios de recessão, a inflação e os juros globais em alta são influenciadores desse movimento. Temos startups com bons projetos que estavam em uma etapa na qual ainda é necessário o dinheiro externo. Essas, principalmente, foram pegas de surpresa e obrigadas a cortar custos muito rapidamente, Outras, por sua vez, criaram dependência do dinheiro de investidores sem se protegerem de cenários como o atual. Se o panorama econômico não se consolidar, empresas que hoje estão demitindo podem futuramente fechar as portas.”

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Legalização das demissões em massa

É muito comum que, em torno da mobilização existente nas demissões volumosas, a legalidade da ação seja debatida e questionada. A questão é que processos de desligamento em massa, embora legais, não necessariamente podem “ocorrer por ocorrer”. Não à toa, em diversos casos irregularidades são encontradas e envolvem decisões judiciais que exigem até mesmo que o colaborador demitido seja reintegrado.

Claudia Abdul Ahad Securato, advogada empresarial e sócia do escritório Oliveira, Vale, Securato e Abdul Ahad Advogados, explica que toda dispensa coletiva depende de um motivo que a justifique, sendo ele, por exemplo, econômico, tecnológico ou de alteração na estrutura da empresa.

“Além disso, antes da entrada em vigor da Lei 13.467/2017 (“Reforma Trabalhista”) as demissões coletivas só poderiam ocorrer após o empregador negociar com o sindicato da categoria, com o objetivo de diminuir os efeitos que o desligamento causava aos empregados e criar medidas compensatórias, sendo que, se tal não ocorresse, poderia ser considerada ilegal. No entanto, a partir da entrada em vigor da Reforma Trabalhista, em novembro de 2017, a demissão coletiva foi submetida às mesmas regras do desligamento individual. Assim, deixou de ser necessária a negociação com o sindicato profissional e cada um dos trabalhadores recebe os vencimentos que receberia caso fosse dispensado individualmente”, diz.

Claudia Abdul Ahad Securato, advogada empresarial, fala sobre os atuais movimentos de demissão

Claudia Abdul Ahad Securato, advogada empresarial e sócia do escritório Oliveira, Vale, Securato e Abdul Ahad Advogados

Entretanto, segundo a especialista, em julgamento recente realizado pelo STF – envolvendo demissão em massa conduzida pela Embraer em 2009 -, por maioria, foi fixada a seguinte tese: “a intervenção sindical prévia é exigência procedimental imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores, que não se confunde com autorização prévia por parte da entidade sindical ou celebração de convenção ou acordo coletivo”. Em outras palavras, de acordo com Claudia, por ser tema de repercussão geral, deverá ter aplicação para os próximos casos semelhantes.

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“Como o tema é recente (decisão publicada em 14/06/2022) ainda não sabemos o entendimento do judiciário com relação aos futuros casos de demissão em massa. No entanto, espera-se que, a partir dessa decisão do STF, a realidade na prática da expressão ‘intervenção sindical’ seja uma tentativa honesta de negociação, de ambas as partes, com o objetivo de minimizar os prejuízos causados aos trabalhadores dispensados, sendo que, se tal for infrutífera, prevaleça a liberdade do empregador de rescindir os contratos de trabalho e tal pratica não seja considerada ilegal”, reitera.

No caso das startups que recentemente demitiram porcentagens significativas de seu quadro total de pessoas, Claudia levanta que, tanto em algumas delas quanto em outras empresas, o desligamento por videoconferência vem se tornando uma prática comum, o que, segundo ela, motivou que “trabalhadores tenham declarado desconforto em algumas situações”, especialmente quando há muitas pessoas envolvidas no vídeo. Apesar da “praticidade”, então, as empresas devem ter cautela.

“Em um momento em que vivemos a era do trabalho a distância, é possível falarmos em demissão por videoconferência, desde que não haja constrangimento aos empregados ou seja feita de forma vexatória. Caso contrário, os empregados podem pedir algum tipo de indenização por dano moral. Ou seja, a natureza da demissão, por si só, não gera o direito ao recebimento de indenização, mas a forma como ela é conduzida, se comprovada situação constrangedora, vexatória, poderá ensejar esse direito e, nos casos em que comprovada dispensa discriminatória ou não forem respeitados os direitos dos empregados”, finaliza.

Capa: Deposithphotos

Por Bruno Piai