No final do mês de agosto, a Justiça do Trabalho aceitou uma ação contra a XP e a Ável Investimentos, empresas do mercado financeiro, em decorrência de uma denúncia de falta de diversidade no quadro de colaboradores dos negócios. A ação pública contra a corretora e o escritório credenciado foi movida por entidades sociais que pedem indenização de R$ 10 milhões por dano social e coletivo.

A polêmica surgiu após a Ável publicar um foto que reuniu mais de cem pessoas. O que chamou a atenção foi o fato de no registro a imensa maioria ser representada por homens brancos e jovens, o que motivou o processo. De acordo com informações do portal de notícias UOL, a juíza Julieta Pinheiro Neta, titular da 25ª Vara do Trabalho de Porto Alegre (RS), determinou que as empresas apresentem contestações sobre os fatos relatados pelas entidades ou uma proposta conciliatória.

Também ao site, a XP manifestou que “conta com o suporte de consultores externos e coletivos de trabalhadores e atua, incansavelmente, para ser cada vez mais um agente de mudança da sociedade e do mercado financeiro”.

Foto divulgada pela Ável causou polêmica e processo contra a empresa

Foto divulgada pela Ável causou polêmica e processo contra a empresa

Em período no qual as discussões sobre diversidade e inclusão são cada vez mais presentes dentro das organizações, o caso gerou discussão e divide opiniões. Para entender melhor a raiz do processo e se a falta de diversidade pode ser um fio condutor para que mais empresas sejam levadas à Justiça, o RH Pra Você entrevistou os advogados Ricardo Calcini, Professor e Coordenador Editorial Trabalhista da Editora Mizuno, e Luiz Afrânio Araújo, sócio da área trabalhista do Veirano Advogados.

RH Pra Você: Do ponto de vista legal, além de situações específicas como a Lei de Cotas, que tem diretrizes para que em determinados casos seja obrigatória a contratação de pessoas com deficiência, quando uma empresa pode ser punida ou levada à Justiça por falta de diversidade?

Araújo: Juridicamente, não há imposição legal que determine processos seletivos, contratação ou manutenção de mão de obra diversa dentro das empresas. As hipóteses de cotas legais referem-se primordialmente à contratação de pessoas portadoras de deficiência e de menores aprendizes. 

A manutenção de um ambiente de trabalho diverso tem sido um compromisso adotado por empresas mais por uma questão social e de compreensão dos benefícios ao negócio do que propriamente jurídica. Diante da ausência de uma obrigatoriedade legal, a possibilidade de punição por ausência de um ambiente diverso é, do ponto de vista jurídico, remota. 

No entanto, é preciso esclarecer que nossa Constituição Federal, em seu artigo 7º, XXX, proíbe expressamente a diferenciação de critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil. Isto significa dizer que, apesar de não termos, em nossa legislação, uma imposição à manutenção de um ambiente de trabalho diverso, não é dado às empresas implementar critérios de seleção que privilegiem ou desprivilegiem determinado grupo de pessoas baseado, nos termos da Constituição Federal, no sexo, idade, cor ou estado civil. 

Neste sentido, há diversas ações civis públicas ajuizadas, sobretudo pelo Ministério Público do Trabalho, contra empresas que possuem critérios discriminatórios de admissão e que, como resultado, apresentam um ambiente de trabalho sem diversidade.

RPV: Qual a base para calcular a indenização?

Calcini: No caso, faltam elementos objetivos para se melhor estimar o valor cobrado na referida ação judicial de R$ 10 milhões. De toda sorte, é uma praxe em ações civis públicas que o valor do dano moral coletivo seja estipulado no patamar da casa de milhões de reais.

Araújo: Em sendo de fato identificada uma lesão a um direito difuso ou coletivo, os danos morais coletivos são fixados a partir de uma dupla função: compensatória e punitiva/pedagógica. A fixação desta indenização não observa um tabelamento legal. Cabe ao Judiciário adotar um critério de razoabilidade e proporcionalidade à conduta adotada e ao direito lesado. Costuma-se levar em consideração questões como a gravidade da conduta do ofensor, a sua situação econômica, o seu grau de culpa, a extensão do por ele dano causado e a repercussão da ofensa. Por não haver uma norma regulamentadora a respeito dos valores a serem fixados, estes são os critérios utilizados pelas decisões na tarefa de quantificar o dano financeiro a ser reparado.

RPV: A XP e a Ável foram requeridas por meio de uma ação civil pública. Quem pode entrar com uma ação deste tipo e em quais circunstâncias?

Araújo: De acordo com a lei que disciplina as ações civis públicas (Lei 7.347/85), podem propor a uma ação civil pública o Ministério Público, a Defensoria Pública, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, Autarquias, empresas públicas, fundações ou sociedade de economia mista, além de associações que estejam constituídas há pelo menos um ano e tenham entre suas finalidades a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. 

Estas ações visam à reparação de determinada violação do patrimônio público, do meio ambiente, do patrimônio histórico ou qualquer um dos direitos difusos ou coletivos. 

RPV: Com base no caso da XP e da Ável, por quais artigos legais se justificaria uma eventual punição judicial?

Calcini: Pautado no exemplo em questão, pode-se embasar a punição das empresas por falta de diversidade nos seguintes artigos:

  • artigo 1º, III, da CF/88 (princípio da dignidade da pessoa humana); 
  • art. 3º, III, da CF/88 (erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais); 
  • art. 3º, IV. Da CF/88 (promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação);
  • art. 4º, VIII, da CF/88 (repúdio ao racismo); 
  • art. 5º, “caput”, da CF/88 (todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade; 
  • art. 5º, I, da CF/88 (homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição); 
  • art. 5º, XLII, da CF/88 (o racismo está definido como crime inafiançável e imprescritível); 
  • art. 7º, XX, da CF/88 (proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei); 
  • art. 170, “caput”, da CF/88 (a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social); 
  • art. 170, VII, da CF/88 (redução das desigualdades regionais e sociais); 
  • art. 373-A da CLT; (disposições legais sobre o acesso da mulher ao trabalho);
  • art. 1º da Lei 9.0929/95; (proibição à adoção de práticas discriminatórias e limitativas para efeito de acesso à relação de trabalho);
  • arts. 1º e 38 da Lei nº 12.288/2010 (políticas voltadas à inclusão racial).

RPV: Qual é o impacto futuro que uma decisão contra a empresa pode ter no mercado de trabalho?

Araújo: Uma eventual decisão contrária à empresa pode representar a tomada de uma posição ativa do Poder Judiciário Trabalhista na promoção da diversidade e inclusão no ambiente de trabalho. À exceção das decisões relativas às cotas legais existentes para empregados portadores de deficiência ou de menores aprendizes, não há precedente judicial impondo a diversidade como uma obrigatoriedade nas empresas. Será, de fato, um precedente inédito e que pode sinalizar um movimento gradual no sentido de outras ações promovidas contra empresas que ainda não priorizaram a diversidade como um valor.

Até os dias de hoje, o movimento pela diversidade tem sido uma promoção orgânica das empresas a partir da percepção dos benefícios de manter um ambiente diverso, não apenas do ponto de vista do compromisso social, mas também a partir dos resultados financeiros obtidos por empresas reconhecidamente diversas, seja pela capacidade de atração de melhores talentos, seja pela maior satisfação de seus empregados ou, ainda, pela tomada de decisões a partir da compreensão de diferentes pontos de vista.

RPV: E vale ressaltar, também, que uma eventual perda na Justiça representaria, além do impacto social, também um forte impacto moral, não é mesmo?

Calcini: É difícil prever em números o impacto financeiro que a empresa terá se confirmada sua condenação. Mas, pelo tamanho da repercussão negativa já havida e divulgada pela imprensa e sobretudo comentada nas redes sociais, é provável que os R$ 10 milhões requeridos a título de indenização sejam apenas uma pequena parcela do prejuízo a ser suportado pelas empresas.

Por Bruno Piai e Gabriela Ferigato