“Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra”. Como diz Chicó, personagem de “O Auto da Compadecida”, ao interpretar as palavras do escritor Ariano Suassuna, “porque tudo o que é vivo, morre”.

Falar e lidar com a morte, no entanto, ainda é um tabu em nossa sociedade – esse “mal irremediável” se torna, assim, interdito. Se a morte é um assunto velado, o luto pela perda de alguém a acompanha.

Para Bernardo Leite, psicólogo especializado em Comportamento Organizacional, a morte é tabu em qualquer lugar, mas, nas companhias, é algo ainda maior. “A empresa é o palco do poder e a morte é a constatação da ausência desse poder. As pessoas evitam tratar do tema”. Mas esse silêncio traz consequências.

“Tem uma influência muito forte no clima da organização porque tratar esse assunto de uma maneira atropelada faz com que a gente deixe de lado alguns pontos fundamentais no processo de atendimento às expectativas do ambiente e, claro, das pessoas. Sem dúvida, o caminho é o da desmistificação por um lado e do reconhecimento de sua importância por outro”, destaca Leite.

Tom Almeida, fundador do movimento inFinito, que articula diversas ações relacionadas à discussão da finitude, concorda que a desmistificação do assunto é o primeiro passo a ser tomado – afinal, toda a comunidade de colaboradores será, e já está sendo, impactada pela morte.

“É importante criar um processo de aceitação sobre a morte, porque, quando ela acontecer, o ambiente estará mais preparado. Claro que cada morte e luto é individual, mas vou preparando as pessoas para falarem de uma forma mais confortável para que acolham o enlutado, respeitem seu espaço. Quando você fala, acolhe e educa faz com que os colaboradores se tornem seres humanos mais humanos”, afirma.

Rede de apoio

Neste contexto, o luto pode acontecer quando o funcionário perde alguém próximo ou quando um colaborador falece – impactando, assim, o ambiente e demais profissionais da organização. Para Almeida, é importante frisar que o luto é um processo natural e individual, que irá depender do grau de proximidade com a pessoa que faleceu; de quem está enfrentando o momento; seu histórico; sua saúde mental – tudo interfere em como será.

“O gestor e o líder precisam ter em mente que há uma parte do ‘fazer’, por exemplo, vamos enviar uma coroa de flores, ligar para a família etc, mas tem outra parte que é mais do ‘ser’, do indivíduo – que é justamente reconhecer e entender que naquele departamento ficou um elefante branco e ninguém está colocando nome. É dar um passo a frente e dizer ‘vamos falar sobre isso?’. Antes disso, perguntar ‘como estão se sentindo?’. Incluir as pessoas. Caso seja a perda de um colaborador, perguntar, por exemplo, o que podemos fazer com a mesa dele(a)? Reconhecer o que está acontecendo. Assumir ‘não sei o que fazer com essa mesa’. Assim, exercitar a vulnerabilidade e que não temos controle sobre isso. Trazer essa humildade para o ambiente”, pontua Tom.

Durante muito tempo, prevaleceu no ambiente corporativo a máxima “deixe seus problemas pessoais fora da empresa”, assim, prevaleceria um suposto profissionalismo. De acordo com Leite, trabalhar melhor as emoções é justamente o que deve ser feito. “O que vejo hoje é que nós precisamos dar um crachá para a emoção. Fazer com que ela esteja mais presente dentro da organização. Trabalhá-las melhor pode ser um caminho extremamente importante, inclusive para olhar questões psicológicas, como depressão”.

Ao longo desta pandemia, a psicóloga Valéria Tinoco, cofundadora do 4 Estações Instituto de Psicologia e especialista em luto, frequentemente se deparou com as perguntas “como faço para não demonstrar meu sentimento?” ou “como faço com que a minha equipe não perceba o que estou sentindo?”. “Ainda existe essa ideia de unir com o lado da fragilidade, vulnerabilidade e me manter produzindo. Já aprendemos que, da mesma forma que estamos vulneráveis, mantemos várias coisas”, destaca.

Tanto o líder como um colega de trabalho, de acordo com Almeida, podem se colocar à disposição e abrir o espaço para a comunicação ao exercer também a empatia. “Entender que o luto é uma travessia, que precisa ser atravessada, não começa e termina em dois, três dias. O gestor tem que entender que é uma travessia que terá de ser feita e que a pessoa tem um aliado nesse processo”.

Nessa construção, questões como propor adiantamento de férias, saber se o profissional deseja seguir nos projetos que está envolvido no momento ou não, são ações que podem ser pensadas. Ao mesmo tempo, Valéria ressalta que há pessoas que não desejam falar sobre o assunto.

“É necessário aprender a ler os sinais. Tão prejudicial quanto ignorar o que o outro passa é forçar a algo. E não assumir que, por ter passado por aquela experiência difícil, significa que não terá condições de fazer o seu trabalho ou decidir algo por ela. Porque às vezes prefere se manter em determinado projeto, porque aquilo a faz bem. O papel do líder é abrir essa conversa para ter a decisão”.

Ações 

A licença óbito, também conhecida como licença nojo, está prevista nas Consolidações das Leis do Trabalho. O nome “nojo”, de origem portuguesa, vem do termo “pesar”, “mágoa profunda” ou “grande tristeza”. Assim, os trabalhadores regidos pela CLT têm direito a dois dias consecutivos de ausência legal em caso de falecimento de cônjuge, ascendente, descendente, irmão ou pessoa declarada como dependente econômico na Previdência Social.

O período de afastamento previsto pela lei é de dois dias consecutivos – e não dias úteis – imediatamente após o falecimento, contudo, existem algumas exceções que estão previstas por lei que modificam a quantidade de dias, por exemplo, para professores e servidores públicos. A licença pode ser alterada também por convenções e/ou acordos coletivos.

Indo além do que está previsto em lei, o psicólogo Bernardo Leite recomenda que as organizações criem procedimentos de atendimento às situações de luto. Essa estratégia, de acordo com o especialista, normalmente descreve algumas iniciativas que a companhia adota nessas situações para poder dar suporte as necessidades do colaborador (ou família). “São as ações de reconhecimento e de manifestação da empresa que mais contam nesse sentido de suporte e conforto. As pessoas querem sentir que contam com a atenção da organização”.

De acordo com o especialista, há algumas ações que marcam positivamente nesse momento. Por exemplo:

  • Liberar algumas pessoas (principalmente da equipe) para comparecimento ao velório. Nesse caso um representante da empresa (RH, gestor ou diretoria);
  • Definir um sistema de comunicação que possa dar a notícias a todos na companhia (seja por intranet, e-mails etc). Esse fator é especialmente importante para empresas com filiais. Muitas vezes temos contato telefônico frequente com outros colaboradores mesmo que a distância;
  • Liberalização de dias de licença, além do convencionado pela CLT ou por Convenções Coletivas, é outra medida que pode auxiliar positivamente na preparação para o retorno do colaborador (em caso de falecimento de parentes);
  • Quando do falecimento de colaborador uma ação de apoio psicológico às equipes é fundamental;
  • Normalmente os seguros de vida em grupo já incluem um Auxílio Funeral (que pode até incluir a realização dos procedimentos de velório etc), mas, na ausência desse recurso, a organização poderia contribuir com um apoio, ao menos financeiro. Afinal, essa é uma despesa normalmente não prevista;
  • Uma ação que tem se notabilizado é a realização de palestras ou “rodas de conversa” com equipes e, principalmente, gestores para uma preparação diante de situações de atendimento ao luto. Infelizmente essas situações ocorrem sem planejamento e é necessário estar preparado para isso.

“O grande problema nas organizações é que, em caso de falecimento, geralmente quem vai atrás de soluções é o gestor e/ou equipe, isso continua não sendo uma política da empresa. A empresa está no palco, os funcionários na plateia. Tudo o que acontece é visto por todos e a falta de atendimento por parte da companhia é visto como uma omissão. O que influencia no clima e em sua imagem. Interfere no nível de produtividade e no engajamento das pessoas”, destaca Leite.

Melhores Práticas

Essas questões ficaram claras no estudo “Melhores Práticas para lidar com o Luto no Ambiente Profissional”, realizado pela empresa Best Homenagens, coordenado por Bernardo Leite e com a colaboração de Mariana Clark, psicóloga especialista em Luto e Sandra Assali, advogada, presidente da Associação Brasileira de Parentes e Amigos de Vítimas de Acidentes Aéreos (ABRAPAVAA) e especialista em Gestão de Crises.

De acordo com a pesquisa, conduzida em 2019 e que contou com 315 organizações respondentes, sendo o público composto por profissionais dessas organizações, em especial da área de Recursos Humanos e Gestores de Pessoas, quase metade dos respondentes (44,4%) apontou uma percepção indiferente ou negativa das ações da empresa diante dos últimos eventos de luto ocorridos internamente.

O apoio psicológico e as homenagens prestadas, apesar de serem as ações de menor presença na oferta de benefícios (9,2% e 6,3% respectivamente), estiveram presentes em 76% das avaliações positivas em relação à forma como a gestão lida com o luto.

De acordo com Leite, a forma como a empresa administra situações de luto tem enorme importância nas questões de clima organizacional, nível de engajamento, orgulho de pertencimento e, inevitavelmente, no índice de produtividade do negócio. “Evidentemente essa é uma preocupação importante para a área de Recursos Humanos”, completa.

Esse olhar atento ao tema independe do atual momento de pandemia que o mundo atravessa, mas Almeida questiona se as empresas estão fazendo um trabalho proativo com os colaboradores e buscando entender se eles estão vivenciando o luto. “Se tem profissionais em luto e eles não sabem. Há muita gente em home office e que antes tinham momentos de descontração e interação, mas podem estar sozinhos. Como o RH e a organização estão cuidando dessas pessoas? Como criar essa rede de apoio?”.

Em sua opinião, as empresas não podem sair desta pandemia sem algum tipo de transformação. “É um papel social lidarem e começarem a incluir essas conversas. As pessoas não estão vivendo naturalmente o luto, isso interfere totalmente na organização. O assunto é fundamental”.

Por Gabriela Ferigato