Em março deste ano, mês que a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou um estado de pandemia do novo coronavírus, o Brasil acompanhou, diariamente, o aumento no números de casos confirmados da doença – esse que passou de dois no primeiro dia do mês para 5.717 no último, segundo dados oficiais das Secretarias Estaduais de Saúde.

Infelizmente, o País também se deparou com outro índice preocupante durante esse período marcado pelo isolamento social. Apenas no estado de São Paulo, os atendimentos da Polícia Militar a mulheres vítimas de violência aumentaram 44,9%, de acordo com relatório divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

O total de socorros prestados passou de 6.775 para 9.817 na comparação entre março de 2019 e março de 2020. Além disso, a quantidade de feminício – homicídio de mulher motivado por violência doméstica ou discriminação de gênero – subiu de 13 para 19 casos no estado. As autoridades ressaltam, ainda, uma possível subnotificação de ocorrências, pois as mulheres podem sentir medo de denunciar os parceiros devido à proximidade.

Autoridades mundiais se manifestaram contra a escalada na violência. O Brasil apresentou algumas medidas para tentar conter os índices – o Governo Federal, por exemplo, anunciou a criação do “Direitos Humanos BR”, uma ferramenta para denunciar diversas violações. Os estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e o Distrito Federal anteciparam a ampliação de seus serviços da delegacia eletrônica e disponibilizaram o registro online de boletins de ocorrências de violência doméstica.

Indo além do âmbito público, o mercado de trabalho não só pode, como deve, atuar e combater essa realidade. Uma pesquisa realizada pela Talenses Group, em parceria com a Rota VCM e o Movimento Mulher 360 (MM360), identificou que 68% das companhias acreditam que esse é um problema que deve ser encaminhado internamente, entretanto, a mesma porcentagem não possui políticas e ações para apoiar funcionárias vítimas de violência doméstica.

De acordo com Margareth Goldenberg, gestora executiva do MM360, organização sem fins lucrativos que busca promover a equidade de gênero, de suas 63 empresas associadas, mais de 80% possuem um canal de ética/conduta onde as profissionais podem fazer denúncias bem como oferecem assessoria, atendimento e dão encaminhamento a casos de violência doméstica.

“Orientamos para que as organizações mantenham seus canais de conduta abertos para que as mulheres possam fazer uma denúncia mesmo agora em home office. Também temos orientado empresas que estão realizando grupos de apoio de forma virtual, modelo formado com psicólogo, assistente social, advogado, que às vezes se alternam, porque esse apoio emocional existe tanto para casos de violência doméstica como para Burnout. Há muitas questões de saúde mental envolvidas no home office. Nesses grupos, há um número/ chat disponível que os colaboradores possam acessar quando necessário. Essa tarefa está sendo bem implementada nas associadas ao MM360”, explica.

Para as organizações que ainda não possuem práticas nesse sentido, o primeiro passo, segundo Margareth, é a criação de um canal de conduta/ética, um local em que as colaboradoras possam fazer a denúncia. “Até pouco tempo atrás, eram denúncias ocorridas somente dentro do ambiente de trabalho, e agora o olhar está se ampliando para a vida doméstica”, completa.

Há quatro dimensões importantes para as empresas trabalharem o tema, conforme destaca o MM360. A companhia deve ser guardiã das práticas de compliance (o ambiente corporativo deve ser livre de assédio moral e sexual); exercer seu papel social (fomentar um lugar saudável, em que a mulher se sinta segura e protegida); cumprir um papel voluntário de alavancar a causa da mulher e ser um agente de mudanças (atuando como um mobilizador e educador da sociedade em prol da violência).

“As iniciativas precisam ser estruturadas no que chamamos de três eixos: prevenção, intervenção e suporte. Prevenção é o canal, prestar informações e orientações, por exemplo o que é natural e o que não é; onde buscar ajuda etc. Intervenção é o apoio e o entendimento do que está acontecendo e, assim, prestar o suporte. Lembrando que as empresas não devem substituir o Poder Público, e sim estimular práticas e políticas bem-sucedidas e atuar com outras unidades da rede pública e práticas em andamento”, reforça Margareth.

Cases do mercado

Algumas organizações estão há largos passos na frente quando o assunto é o combate contra a violência. Em 2017, a gerente de uma unidade da rede Magazine Luiza em Campinas, interior de São Paulo, foi morta pelo marido. Logo após o ocorrido, a companhia criou o seu Canal da Mulher. Por meio dele, as colaboradoras que sofrem violência podem denunciar e receber apoio da empresa e todos os profissionais, tanto mulheres como homens, podem denunciar, caso suspeitem que alguma colega esteja vivenciando esse problema.

Em setembro 2018, a companhia fez um evento com cerca de 200 membros de outras organizações onde entregou uma cartilha em que estão descritos os detalhes da implantação e manutenção do programa. Em mais, no ano passado, a partir do mote “Eu meto a colher sim”, uma resposta ao conhecido ditado “Em briga de marido e mulher, não se mete a colher”, a varejista anunciou uma nova funcionalidade fixa de seu aplicativo de e-commerce: um botão de denúncia para casos de violência contra a mulher. Ele faz com que a pessoa ligue diretamente para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher – medida adotada em 2005 pelo Governo Federal.

Desde 2019, a Marisa mantém seu Canal do Acolhimento, programa que oferece apoio, orientação e auxílio no encaminhamento aos órgãos responsáveis às profissionais que se encontrem em situação de violência doméstica. O contato pode ser feito no Canal por uma central telefônica ou e-mail e as informações recebidas são totalmente sigilosas e pautadas no respeito à intimidade/privacidade de cada funcionária. Após receber o relato, o Comitê dá andamento em tratativas internas para contatar a colaboradora e atuar no caso, se for feito o pedido formal por parte dela.

Segundo a empresa, diante do atual momento, as ações foram intensificadas e a organização se juntou à ONG Turma do Bem em uma ação que teve como objetivo contribuir com o projeto Apolônias do Bem. A iniciativa consistiu na reversão de 100% da renda obtida com a venda de uma série de produtos do e-commerce da companhia para o programa que oferece tratamento odontológico integral e gratuito às mulheres que vivenciaram situações de violência e tiveram a dentição afetada durante as agressões.

Recentemente, as marcas Natura, Avon e The Body Shop projetaram em diversos pontos do Brasil mensagens de combate à violência doméstica. A iniciativa, que faz parte da campanha #IsoladasSimSozinhasNão, buscou criar uma rede de apoio entre vizinhos, amigos e familiares, dando-lhes informações e ferramentas para que saibam como agir diante de um caso.

Mas não é de hoje – mais especificamente há 12 anos – que a Avon se engaja na causa. O Instituto Avon já destinou, ao todo, mais de 30 milhões de reais para apoiar e proteger mulheres e meninas em situação de violência em quatro frentes: produção e divulgação de conhecimento sobre a causa, advocacy, engajamento da sociedade e suporte a projetos nas áreas de segurança pública, justiça, saúde e educação no tema.

Segundo Daniela Grelin, diretora executiva do Instituto Avon, a organização vem olhando com muita preocupação as notícias sobre o aumento da violência contra a mulher desde o início da pandemia. “Esse contexto requer ações emergenciais que em uma situação de normalidade levariam muito mais tempo para ser executadas. Por isso, o Instituto Avon, em parceria com mais 11 instituições da iniciativa privada, sociedade civil e o Ligue 180, criou um programa com ações e serviços essenciais disponíveis às mulheres que estejam vulneráveis em casa, confinadas com seus agressores, e em situação de violência.  Se propõe a facilitar o pedido de ajuda e ser uma ponte entre as necessidades básicas e psicológicas e os recursos disponíveis”, conta.

Entre as diversas ações, foi criado o Mapa do Acolhimento, que conecta mulheres em busca de atendimento a uma rede de psicólogas e advogadas voluntárias em todo o Brasil especializadas em violência de gênero dispostas a atendê-las. Além do apoio psicológico e jurídico, a plataforma lançou o #TôComElas, uma iniciativa colaborativa para mapeamento online de serviços públicos para fornecer encaminhamentos mais ágeis. 

“O Instituto Avon acredita na união de forças. Somente uma ação conjunta será capaz de dar uma resposta rápida e eficaz à essa pandemia silenciosa que se agrava à sombra da pandemia de Covid-19. Exemplo disso é o Programa Você Não Está Sozinha, no qual chamamos empresas que pudessem nos ajudar nesse momento que exige medidas imediatas. Além disso, em agosto de 2019, oficializamos a Coalizão Empresarial pelo Fim da Violência contra Mulheres e Meninas, que tem como principal objetivo engajar líderes do setor privado e garantir o compromisso voluntário com o fim da violência contra as mulheres. Hoje, contamos com a adesão de mais de 100 companhias de todo Brasil e diversos setores que acreditam, junto com a gente, que é possível enfrentar uma epidemia há muita tempo conhecida e que atinge milhares de mulheres”, ressalta Daniele.

Todos os serviços disponíveis para as mulheres em situação de violência e orientações de como solicitar ajudar psicossocial, jurídica e material estão no site.

O tema “Violência e Assédio Contra a Mulher” foi também o tema de estreia do podcast MM360. Ouça aqui. 

Como denunciar a violência doméstica:

Disque 180: A denúncia é anônima e gratuita, disponível 24 horas, em todo o país. Os casos recebidos pela central são encaminhados ao Ministério Público.

Disque 100: recebe, analisa e encaminha denúncias de violações de direitos humanos. Funciona diariamente, 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. 

PM – Disque 190: Quando não há uma delegacia especializada para esse atendimento, a vítima pode procurar uma delegacia comum, onde deverá ter prioridade no atendimento. Ou pode pedir ajuda por meio do telefone 190. Nesse caso, uma viatura da Polícia Militar é enviada até o local.

Por Gabriela Ferigato