O celular vibra no meio da reunião. Ele tenta disfarçar, mas a ansiedade o entrega. Mais uma notificação do “jogo do tigrinho”. Nos últimos dias, já perdeu o horário duas vezes, pediu adiantamento de salário, não almoça com o time há semanas. Sempre isolado. Sempre no celular. Quando não está apostando, está fazendo cálculos mentais para tentar recuperar o que perdeu. No fundo, sabe que não é só um joguinho — mas também já não consegue parar.
Essa poderia ser apenas mais uma história pessoal. Mas o que vem acontecendo nas empresas é muito maior: o vício em apostas online deixou de ser um desvio pontual para se tornar uma epidemia silenciosa — que está afetando o clima, o foco e a produtividade de equipes inteiras.
Embora ainda seja tratado por muitos como uma questão individual, os impactos corporativos são inegáveis. Segundo a Confederação Nacional do Comércio, em 2024 mais de R$ 103 bilhões deixaram de circular no varejo porque os consumidores passaram a gastar em plataformas de apostas. A economia sente. As famílias sentem. E, agora, as empresas estão começando a sentir também.
Uma pesquisa do Instituto Locomotiva aponta que 86% dos brasileiros que apostam estão endividados, e 37% afirmam ter usado dinheiro reservado para contas importantes com o vício. O cenário é de alerta máximo — e ainda assim, boa parte das lideranças não percebe que esse problema já chegou dentro dos seus próprios times.
A engenharia do vício: como as apostas capturam o colaborador
O ciclo começa de forma sutil: um colega compartilha um link, o algoritmo sugere uma plataforma, a promessa de “dinheiro fácil” parece inofensiva. O colaborador aposta R$10, ganha R$40, e acredita que achou um atalho. Mas essas plataformas são desenhadas para manipular o cérebro. Cores vibrantes, sons de vitória, recompensas intermitentes. Cada estímulo ativa o sistema de recompensa neural, reforçando o comportamento de risco.
Com o tempo, esse padrão evolui para um transtorno chamado ludopatia — reconhecido pela Organização Mundial da Saúde como uma condição grave de perda de controle sobre o impulso de jogar. No Brasil, a evolução dessa crise já aparece nas estatísticas do SUS: os atendimentos por "jogo patológico" saltaram de 65 casos em 2019 para 1.292 em 2024.
Quando o vício entra no CNPJ
O que antes era uma crise silenciosa, hoje aparece nos relatórios de RH. Uma pesquisa da Creditas Benefícios em parceria com a Wellz by Wellhub e Opinion Box revelou um panorama alarmante entre mais de 400 empresas brasileiras:
- 53% dos líderes identificaram funcionários com problemas financeiros causados por apostas
- 66% relataram impactos negativos na saúde mental
- 59% notaram queda de produtividade
- 21% perceberam aumento no turnover
E isso ainda é só a superfície.
A compulsão por apostas não é apenas um problema financeiro — é um colapso emocional que mina o foco, a energia e a motivação do colaborador. O custo do vício aparece no absenteísmo, nos afastamentos por burnout, na quebra de confiança entre pares e na queda dos indicadores de performance.
Segundo dados do INSS, os pedidos de auxílio-doença por ludopatia cresceram 2.300% entre 2023 e 2025. A maioria dos afastados tem entre 18 e 39 anos — ou seja, estão em plena fase produtiva e, muitas vezes, são o pilar financeiro da família.
Empresas adoecem junto com seus times
Funcionários fragilizados emocional e financeiramente não entregam resultados sustentáveis. Eles adoecem mais, se desconectam mais rápido, e muitas vezes acabam saindo da empresa — não por falta de competência, mas por falta de suporte. Ignorar o impacto das bets no ambiente corporativo é como tapar um vazamento com papel: o estrago só vai crescer.
É por isso que o tema entrou de vez no radar de grandes eventos corporativos. Recentemente, fui convidado para palestrar sobre o assunto no 25º Congresso de Stress da ISMA-BR — organização internacional referência em saúde emocional — e também no CBTD, o maior evento da América Latina sobre treinamento e desenvolvimento humano.
A mensagem é clara: o vício em apostas deixou de ser marginal e passou a ser estratégico. Quem ainda não está olhando para isso dentro da empresa está correndo o risco de perder talentos, produtividade e cultura organizacional.
O que sua empresa pode fazer — agora
- Mapeie o problema
Observe sinais de endividamento, queda de desempenho, uso excessivo do celular e distanciamento social. Escute os líderes. - Quebre o tabu
Tratar o vício como falha moral só piora a situação. Encare como uma questão de saúde emocional e ofereça suporte. - Implemente políticas internas claras
Assim como existem diretrizes sobre álcool e drogas, o uso abusivo de plataformas de apostas pode e deve ser regulado. - Invista em programas de bem-estar financeiro e emocional
Roda de conversa, acesso a terapia, consultoria financeira e espaços de acolhimento fazem toda a diferença.
Falar sobre isso não é modismo. É prevenção.
O impacto das apostas online está cada vez mais claro: menos dinheiro no bolso, menos saúde mental, menos produtividade. Empresas que se anteciparem ao problema terão um diferencial competitivo não apenas no cuidado com as pessoas, mas na capacidade de construir ambientes sustentáveis e resilientes.
Não se trata de vigiar seus colaboradores. Mas de enxergar o que está por trás do silêncio, da queda de desempenho e do pedido de demissão inesperado. Porque, muitas vezes, antes da aposta... vem o pedido de socorro.
Thiago Godoy, mestre em educação financeira pela FGV-SP e fundador da Papai Financeiro. Atuou como Head de Educação Financeira da XP. Palestrante internacional e 2x TEDx Speaker. É o autor do best-seller “Emoções Financeiras”. É um dos Colunistas do RH Pra Você. O conteúdo desta coluna representa a opinião do colunista. Foto: Divulgação.