Reportagens foram publicadas sobre a situação das mulheres na pandemia, e o atraso que ela causou ao seu desenvolvimento social e profissional.
Essa situação desnuda um preconceito que é mais uma questão estrutural de nossa sociedade da qual as empresas são reflexo do que somente um preconceito empresarial.
A obrigação materna de cuidar dos filhos, a ausência de apoio familiar, mesmo as que não são sozinhas, e a ausência de política das empresas para essa situação decorre dessa sociedade, de seus valores. O preconceito social reduz a possibilidade de desenvolvimento das mães no mercado de trabalho.
A mudança social é mais lenta e estrutural e depende basicamente das próprias famílias. É nelas que essa situação deve ser revista, mas com efeito a longo prazo: Como meninos e meninas são criados ainda hoje em dia – ambos com exatamente as mesmas obrigações quanto às tarefas domésticas? Ou isso é coisa de mulher? Não é só na liberdade dos brinquedos que a diferença de gêneros será reduzida, isso é só uma parte, a menor parte. Maridos “ajudam” ou não fazem nada mais que sua obrigação como parte de um casal?
A relação do casal, a relação dentro da família são situações que precisam ser pensadas e modificadas. O relatório do IPEA mostra essa desigualdade, que aparece gritante na situação de pandemia:
(…) Ou seja, apesar de as mensurações ocorrerem no início da crise, foi possível identificar uma elevação na probabilidade de perder o emprego.
Em ambos os gráficos, destaca-se o fato de que os grupos com maiores chances de perder o emprego no início da crise são as mulheres e os jovens, cerca de 20%. No entanto, vale notar que, ao comparar com os anos anteriores, os jovens possuíam probabilidade bastante elevada em contraste com os adultos, e esta subiu cerca de 2 a 3 p.p. na crise. As mulheres sofreram uma elevação de 7 a 8 p.p. nas chances de perder o emprego. (…)
E ainda:
Em outros termos, considerando o indicador de perda de emprego e os diferenciais associados às características individuais, observa-se que a crise econômica introduzida pela pandemia do novo coronavírus aprofundou algumas das desigualdades observadas no mercado de trabalho, pois aqueles que estavam em situação desvantajosa apresentam piores indicadores.
Contudo, vale ressaltar que a deterioração foi ainda maior entre as mulheres. E esse preconceito não é algo de uma população considerada menos culta ou favorecida do ponto de vista social, como mostra pesquisa efetuada na Faculdade de Direito da USP
Na conclusão podemos encontrar:
Quando identificamos no ambiente da universidade e, mais especificamente, no ensino do direito, os padrões, comportamentos e as nuances das interações sociais de gênero que estão escondidos, descortinamos a existência de um “currículo oculto”, que compreende padrões de comportamentos, normas sociais, expectativas e visões de mundo que impactam o processo de ensino-aprendizagem.
Nesse sentido, observamos que o ensino está permeado por conteúdos informais que sistematicamente reproduzem relações de poder e reforçam estereótipos e dinâmicas de gênero socialmente estabelecidas. O ambiente da sala de aula, portanto, acaba sendo construído por valores que não refletem inclusão e respeito às mulheres – sendo um agravante o fato disso não estar necessariamente explícito nas ações, falas e conteúdos programáticos.
Assim, essa pesquisa revela o cenário de desigualdade de gênero nas salas de aula, dando oportunidade para a reflexão e potencial reconstrução das relações sociais afetadas por este problema. A identificação deste fenômeno é ainda mais relevante no contexto das faculdades de direito, responsáveis pela formação de profissionais que podem assumir posições-chave na escala de poder e tomada de decisão, capazes de influenciar e modificar a construção das relações sociais.
Essa conclusão e seus demais achados apontam para uma agenda de pesquisa importante, que precisa ser estimulada dentro das universidades para criar um ambiente de ensino e aprendizagem mais plural e inclusivo, apto a se tornar mais propício a fomentar um real debate de ideias e de formação de profissionais capacitados para lidar com uma complexidade marcada por diferenças e desigualdades.
Assim, a situação no trabalho nada mais é do que reflexo da sociedade em seus mais diferentes segmentos, situação que precisa ser modificada, e talvez a mudança possa começar na própria empresa. Já que, na relação de trabalho o “não preconceito” pode ser imposto por normas internas mandatórias, por Compliance…
Às empresas, às mais responsáveis, cabem ser proativas. Se o teletrabalho se mostrou possível em pandemia, por que não pensar uma continuidade para quem, é bom profissional, pode e precisa trabalhar de casa? E em condições de trabalho quando o trabalho presencial voltar? Não se trata de caridade, mas de adequação e flexibilização para obter a mesma produtividade com condições diferentes de trabalho.
Cabe ainda às mulheres exigir de suas entidades sindicais, essas tão quietas nesse assunto, e sem foco na contribuição assistencial, a criação de regras. E, para isso, devem elas exigir maior participação sindical, o que realmente não ocorre na maioria dos sindicatos.
Às mulheres resta o conselho de não desistir e buscar ferramentas para encontrar seu lugar na sociedade, analisando, inclusive como evitar a manutenção do status quo.
A crise, portanto, apenas desnudou um preconceito que tem que ser combatido, e em diferentes frentes, mas de forma imediata, a atuação responsável de empresas e sindicatos talvez possa reduzir os efeitos dessa ordem social.
Maria Lucia Benhame, advogada e sócia do escritório Benhame Sociedade de Advogados, especialista em gestão trabalhista. É uma das colunistas do RH Pra Você. O conteúdo dessa coluna representa a opinião do colunista. Foto: Divulgação.