Por mais artificial que a inteligência se torne, existirão sempre, ainda bem, fenômenos que não dominaremos: o tempo é um desses fenômenos.

Por isto a pergunta no título desta matéria: Até Quando?, é um convite para reflexão sobre a prática, secular, da desumanização de uns, expostos para o atendimento à saciedade da fome provocada pelo ódio ao diferente.

Ódio que precisa ser justificado pela desqualificação de outros que ao serem mantidos assim, nesse estado, desqualificados, atenuam a culpa de uns, e reforçam as barreiras de acesso a outros (os desqualificados).

Quando há algumas décadas atrás, nas aulas de latim era obrigada a decorar as declinações e a ouvir as “Catilinárias”, não imaginava que seriam tão úteis ao longo da minha vida e como seriam sempre atuais!

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                     Marco Túlio Cícero

Catilinárias” é uma série de 4 discursos célebres de Marco Túlio Cícero, proferidos 63 anos a.C.

Os discursos de Cícero denunciavam a conspiração pretendida pelo senador Lucio Sergio Catilina que, juntamente com seus seguidores, planejavam derrubar o governo para obter mais riquezas e poder.

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                    Lucio Sergio Catilina

Mas, após o confronto aberto por Cícero no senado, Catilina resolveu afastar-se do senado, indo juntar-se a seu exército clandestino para organizar a sua defesa.

Segundo registros, após o quarto discurso, Catilina foi condenado à morte, recusou-se a entregar-se e foi morto em um campo de batalha no ano seguinte.

Essa personagem, o Catilina, será nosso pano de fundo nesta matéria, uma metáfora que pode ser real, por isso a usaremos como uma analogia.

Dizia Cícero em seu discurso à Catilina:

“Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?

Por quanto tempo a tua loucura há de zombar de nós?

A que extremos se há de precipitar a tua desenfreada audácia?…

“…Não te dás conta que os teus planos foram descobertos?

Não vês que a tua conspiração a têm já dominada, todos estes que a conhecem?

Quem, dentre nós pensas tu, que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, onde estiveste, com quem te encontraste, que decisão tomaste?
Oh tempos, oh costumes!”

Para mim, Catilina se reinventa, renova, aperfeiçoa seus requintes de destruição na busca de manter o Poder ao longo do Tempo, representando o ser humano que não mede esforços para alcançar o seu intento, custe o que custar, sabendo a quem vai custar…

Custará para aqueles que historicamente foram classificados como inferiores, para que outros pudessem usufruir de privilégios e justificar o injustificável:

  • A submissão de uns e o favorecimento de outros.

O poder precisa se assentar em bases convincentes com o uso de estratégias de desqualificação das pessoas, que precisam ser desprezadas, odiadas e para tal, retiram-lhes a dignidade, comparando-as aos animais; impedindo-lhes o acesso à propriedade privada que lhes proveria o trabalho, renda, e a base de tudo: acesso à educação de qualidade.

E a nossa personagem assim o fez ao longo da história! 

Catlina esteve lá, na pele dos europeus; ingleses, franceses, belgas e dos norte-americanos, até meados do século 20, nos Zoológicos de Humanos Bizarros, por exemplo, como citado em nossa matéria: “BBB21 quem lhe representa? Zoológicos humanos”.

As exibições enfatizavam as diferenças físicas, culturais entre europeus, da civilização ocidental e outros povos que praticassem um estilo de vida julgado como primitivo pelo ocidente, em especial, os negros.

Assim foi com Sarah Baartman: nascida em 1789 na África do Sul, que levada para a Europa, recebeu o nome artístico de “A Vênus Hotentote” ( imortalizada no filme Vênus Negra), foi transformada em uma atração de circo em Londres ( Piccadilly Circus) e Paris, onde multidões observavam seu corpo, sendo exibida em feiras europeias de “fenômenos bizarros –  humanos”.

As comparações com os primatas, as chacotas durante as suas apresentações eram o ponto alto do espetáculo.

Após sua morte aos 26 anos, 1815, seu cérebro, esqueleto e órgãos sexuais, continuaram a ser exibidos por mais 159 anos no Museu do Homem de Paris até 1974. Há 48 anos atrás, apenas!

Ou seja, pessoas com 60+ anos de idade, tiveram acesso a essa visitação.

E pergunto: que histórias contaram para seus descendentes sobre isso?

Os restos mortais de Sarah só retornaram à África do Sul em 2002, após a França concordar com um pedido feito por Nelson Mandela.

Hoje, Sarah é considerada como símbolo da exploração e do racismo colonial, bem como da ridicularização das pessoas negras muitas vezes representadas como objetos. 

Estratégias de desqualificação ? Até quando?

Em 2014, o jogador de futebol Daniel Alves, foi vitima de agressão quando lhe jogaram uma banana e ele teve o que chamaram de “ Fina indignação”, pois aparentemente não se abalou; descascou a banana e a comeu. Mas, quanta simbologia!

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Racimo Recreativo

Ridicularização, humilhação de Sarah Baartman a Daniel Alves e tantas e incontáveis outras pessoas são expressões do racismo recreativo.

“Ver uma pessoa negra em uma posição de destaque pode chocar o não negro, que precisa lembrar o lugar que a sociedade lhe destina… O humor racista é uma espécie de pedagogia racial, dizendo aos negros, que não podem demandar o mesmo nível de respeitabilidade social dos brancos.

Piadas reforçam a ideia de superioridade. O humor racista é estratégico, pois reproduz estereótipos que servem para legitimar estruturas de poder”, Dr. Adilson José Moreira.“Racismo recreativo”.Humor racista e a  naturalização da violência racial no Brasil.

Raiva, violência, ódio, tudo isso seria MEDO de perder o poder, domínio das pessoas? E o que nos contaram sobre as estratégias de naturalização da desumanização da raça negra no Brasil?

Desde o Século XV, quando Portugal e a Igreja Católica se uniram para reduzir todos os africanos à escravatura perpétua. Em 1454, a “Bula Dum Diversas”  assinada pelo Papa Nicolau V, dá aos portugueses, Rei Afonso V, a exclusividade para aprisionar negros para o reino e lá, batizá-los. Privilégio estendido depois aos espanhóis.

E pergunto: que histórias contaram para seus descendentes sobre isso?

  • 1824: Lei Complementar à Constituição do Império, proíbe os negros de frequentar escolas, pois eram considerados doentes, portadores de moléstias contagiosas, assim como os leprosos.
  • 1850: Lei 601 – Lei de Terras, determinando que as terras só poderiam ser ocupadas por compra/venda ou autorizada pelo imperador, tornando-as inacessíveis aos negros escravizados. 
  • 1864 -1870: Guerra do Paraguai : A falsa libertação. Para cada branco convocado, os “senhores” enviavam 10 negros para a guerra. A população negra foi reduzida de 2.5 para 1.5 milhões; de 25 para 15% da população brasileira.
  • 1871: Lei do Ventre Livre: Separação dos filhos da sua família. As crianças  eram enviadas para casa de acolhimento e de cada 100, 80 morriam.
  • 1885: Lei do Sexagenário. Início da mendicância no Brasil: libertos, velhos, doentes e sem trabalho.
  • 1888: Lei da Abolição da Escravatura. Sem qualquer planejamento e apoio estrutural, institucional, os escravizados são libertos e passam a perambular pelas ruas.
  • 1890: A iniciativa privada e pública brasileira, uniram esforços para importar  pessoas brancas europeias. A elite da sociedade, os intelectuais, políticos, defendiam a existência de um padrão genético superior para a “raça” humana. O entendimento era que o homem branco europeu tinha o padrão da melhor saúde, da maior beleza e da maior competência civilizacional em comparação às demais “raças”, como a “amarela” (asiáticos), a “vermelha” (indígenas) e a negra (africana). 

Esta foi a “Política de Branqueamento” da população brasileira, com o patrocínio da vinda de pessoas brancas europeias com o oferecimento de passagens, emprego na indústria, terras, para garantir a permanência no país.  

Com a negação de acesso à terra, ao trabalho remunerado e educação, podemos pensar em MERITOCRACIA? 

Abracemos as Ações Afirmativas para a promoção da igualdade racial, Iniciadas  pela Lei  12.711/2012 e neste ano, deverão ser avaliadas.

Numa sociedade estruturalmente racista, sexista, machista, LGBTQIA+fóbica, capacitista, etarista,…,  se a sua empresa não desenvolve ações inclusivas, os sues resultados são excludentes. 

Mas há luz na porta do túnel, iluminando um longo novo caminho com o Pacto de Promoção da Equidade Racial, iniciativa que propõe desenvolver um “Protocolo ESG Racial” para o Brasil, trazendo a questão racial para o centro do debate econômico brasileiro e atraindo a atenção de grandes empresas nacionais, multinacionais e da sociedade para o tema.

A adesão ao Pacto é voluntária, por empresas interessadas em atender às demandas sociais por maior equidade racial, consciência social e transparência.

 A meta para 2024/2026, segundo Jair Ribeiro (concepção do projeto), é ter de 500 a 600 empresas brasileiras aderentes ao Pacto e investindo em equidade racial.

Considero que estamos saindo de alternativas de acesso desigual às oportunidades, passando pelo uso de ferramentas e assistência uniformemente distribuídas  e entrando na era da equidade com o uso de ferramentas customizadas, que identificam e corrigem a desigualdade e finalmente, nos aproximando da justiça: correção do sistema para que ofereça igual acesso tanto a ferramentas quanto a oportunidades.

A adoção deste Índice pelas empresas é mais uma oportunidade para nós, profissionais de RH demonstrarmos a efetividade da nossa ação estratégica, lembrando  aqui a importância da sua competência como educador, começando pela alta direção das empresas e na defesa da tão falada humanização do trabalho, sem abrir mão, é claro, da demonstração de retorno tangível.

Por Jorgete Lemos, sócia fundadora da Jorgete Lemos Pesquisas e Serviços – Consultoria. É uma das Colunistas do RH Pra Você. O conteúdo desta coluna representa a opinião do colunista. Foto: Divulgação.