Luto nos ambientes de trabalho devido à morte por Covid-19: UMA PRÁTICA DE CUIDADO GENUÍNO

Como podemos cuidar de nossos times quando perdemos colaboradores por COVID-19? Qual a importância oferecer apoio emocional durante o processo de luto no ambiente de trabalho?

Neste artigo compartilho minhas experiências na condução de Grupos de Luto e Acolhimento Emocional (on line) com profissionais de grandes empresas que estão buscando tratar de forma humanizada as perdas, que infelizmente tiveram, de colaboradores devido às complicações da COVID-19.

“Você não chora. Está estranho. Fica aí calado, distraído. Sei que está sofrendo pela morte do seu colega.

Você precisa chorar. Botar isso pra fora! Vai te fazer mal. Já faz um mês.”

Era isto que um profissional de pesquisa de campo de uma multinacional ouvia da esposa todos os dias após o falecimento de um colega de seu time de trabalho, vítima da COVID-19 em abril último.

Ele se disse muito aliviado quando ouviu da psicóloga num grupo de Acolhimento e Luto que cada pessoa passa pela dor da perda de um jeito, e que isto é normal. Aprendeu ali, também, o que precisa perceber em seus sentimentos e comportamentos neste período e em quais situações precisaria de apoio profissional para atravessar o momento de forma saudável. Este grupo, formado por pouco mais de 15 pessoas, se reuniu em ambiente fechado on line por aproximadamente uma hora e meia para conversar sobre a perda do colega, quase um mês após o ocorrido.

VIDAS QUE SE VÃO, VAZIOS QUE FICAM

O contato com a morte é sempre uma experiência impactante. Não importa o quando você é “forte” ou “experiente” no assunto. É um processo que gera desorientação, emoções intensas, alterações comportamentais e psíquicas, e até sintomas físicos. Voltar ao local de trabalho no dia seguinte e ver a cadeira, o colete e a garrafinha de água sobre a mesa de alguém que dividiu o dia a dia contigo por anos e que não vai mais voltar não é algo cotidiano. Esta não é uma situação que vai “passar com o tempo” e que “não tem o que fazer, a vida é assim mesmo”. Não é justo (nem ético) reduzir a dor das pessoas aos conselhos baratos de “a vida é dura meu amigo”.

Trabalho com seminários sobre “Ciclos de Vida, Morte e Luto” para profissionais do cuidado tem mais de 10 anos e reconheço que a maioria de nós não foi preparado para saber o que dizer num velório, para ver um profissional renomado chorar que nem criança, para saber como apoiar alguém em luto, como cuidar deste tipo de dor, nem em nossas vidas e relações pessoais, menos ainda como profissionais. Além disto, a experiência em acompanhar equipes e gestores que passaram por acidentes fatais na indústria a lidar com estes delicados momentos me mostrou que há, sim, ações e cuidados que podemos oferecer como empresa e como área de Saúde e Segurança/Recursos Humanos para apoiar e cuidar das pessoas neste tipo de travessia.

GRUPO DE ACOLHIMENTO E LUTO PARA CUIDAR DE EQUIPES QUE PERDERAM COLEGAS POR COVID-19

Mais do que um espaço para “desabafar”, uma reunião para CUIDAR de um grupo enlutado é um espaço para entrarmos em contato, com tempo e suporte emocional, com aquilo que está vivo dentro de cada um. Costumo conduzir um trabalho como estes num intervalo entre 10 e 30 dias após o falecimento ter sido divulgado dentro da empresa. Há um timming muito sensível para isto ser útil e todo cuidado e respeito é pouco na oferta desta conversa para um grupo sensibilizado pela morte de alguém próximo.

Quem faz sentido convidar? Como fazer este delicado convite? Como envolver o grupo nesta oferta? Quem pode estar presente? Quem vai conduzir? Estes cuidados fazem parte da Gestão de Riscos deste tipo de ação. Erros e mal entendidos neste manejo podem esvaziar o potencial de apoio genuíno que este encontro pode trazer.

Os três objetivos principais deste espaço de Acolhimento são:

  1. Ajudar o grupo a construir um espaço de Confiança e Rede de Apoio entre eles onde se torne confortável dialogar a respeito de como estão atravessando esta perda. Chamo isto de “rasgar o véu da conversa” que estava presa e sem contorno. O papel da facilitadora neste momento é ser quase uma “parteira” daquela emoção que quer sair mas nem a pessoa havia percebido que ela estava lá dentro, apertando;
  2. Realizar uma Abordagem Psicoeducacional, ou seja, trazer em “pílulas” bem acessíveis alguns conceitos centrais sobre Luto e Estresse Pós-Traumático para instrumentalizá-los sobre como Cuidar de Si na travessia e em que situações apoio profissional pode ser útil ou necessário e
  3. Abrir espaço para que o grupo comece a conversar sobre como querem Ritualizar a perda do colega. Trata-se de um processo de grande importância na elaboração do luto e que está bastante impedido devido ao cenário de pandemia. Abrimos aqui o suporte organizacional para que escolham como querem se Despedir do colega, como querem Homenagear sua passagem pelo grupo e como gostariam de levar à família da vítima de COVID uma Mensagem dos colegas de trabalho.

É importante afirmar que todos os três objetivos não se esgotam numa reunião de 1 hora e 30 minutos. É claro! Na preparação da ação já alinhamos com o Gestor da área, com o RH, com o Serviço Social e a área de Saúde como podem assumir o apoio a cada item e tocar com o grupo novos espaços na agenda do time para seguir tratando destes temas.

“Racionalizar, diminuir e colocar no Excel o sofrimento das pessoas é uma forma de violência psíquica inaceitável, especialmente quando atravessamos uma calamidade como a que estamos vivendo nesta Pandemia” (Juliana Bley).

IMPORTANTE: a escolha do profissional que vai conduzir esta prática é um requisito de extrema importância. É fundamental que seja um profissional capacitado e experiente na condução de conversas difíceis e delicadas, com conhecimento comprovado em questões como Luto, Estresse Pós-traumático e facilitação de Grupos terapêuticos. E o critério mais importante: que seja capaz de sentir junto com as pessoas e de respeitar, genuinamente, o momento pelo qual estão passando. A empatia é ingrediente indispensável nesta prática.

O PODER DA ESCUTA E DO ACOLHIMENTO NA GESTÃO DE RISCOS PSICOSSOCIAIS

“Eu estou muito assustado e com muito medo de morrer.

Ver o que aconteceu com ele me fez cair na real que isso pode acontecer comigo também.

Não estou conseguindo me equilibrar estes dias. Está bem difícil ir trabalhar!” (Gestor direto do colaborador falecido)

Para além das importantíssimas medidas práticas de atendimento à família e procedimentos legais, é preciso reconhecer que estas pessoas que conviviam com este colaborador foram afetadas em níveis subjetivos, de forma mais ou menos duradoura. Precisamos considerar que uma perda por morte não é um fato corriqueiro e nem algo que vai se dissolver de forma rápida e indolor. De forma direta ou indireta o processo de luto vai, provavelmente, gerar algum nível de sofrimento e afetar estas pessoas, sua qualidade de vida, sua relações próximas (pessoais e profissionais), sua relação com a rotina até mesmo a qualidade de sua atenção e performance, por um tempo. O luto passa sim, mas não tão rápido.

Algumas aprendizagens e percepções que estes encontros têm me apresentado:

  • Como não temos, no geral, histórico de lida com Vulnerabilidade emocional nos ambientes profissionais, as pessoas envolvidas deslocam para casa e as relações familiares o palco onde este sofrimento pode ser vivido e conversado. Neste período de pandemia e isolamento social, esta carga afetiva pode sobrecarregar bastante a convivência familiar.
  • Devido a esta mesma barreira cultural, o grupo tende a passar dias, talvez meses, sem conseguir tocar no assunto. Todos se percebem sofrendo mas ninguém tem coragem de abrir a conversa. Temem o julgamento, temem a reação do outro, temem estar sendo inadequados ou vistos como “fracos”.
  • Os gestores percebem o clima da equipe alterado, querem muito fazer alguma coisa, mas não sabem o que fazer para lidar com isto. Como confortar? Como apoiar? Às vezes se arriscam com algumas medidas mas sempre inseguros pela falta de parâmetros mais claros de que tipo de “ajuda” realmente vai “ajudar”as pessoas naquele momento.
  • É incrível o poder curativo da Escuta! Muitos relatam o alívio que sentiram ao ouvir seus colegas falando de seus sentimentos (e alguns às lágrimas) e perceberem que quase todo o grupo estava abalado tanto quanto eles. E dizem que ter tido a coragem de conversar a respeito os deixou mais confiantes para seguir no dia a dia compartilhando seus desafios e apoiando-se mutuamente na jornada diária do processar o luto.
  • A ausência de oportunidade de despedida e de rituais fúnebres devido à pandemia deixa um “buraco” estranho de lidar. A pessoa simplesmente desaparece do convívio e a falta da despedida não colabora para a elaboração saudável do luto (vide matéria abaixo sobre “dupla morte”). Por outro lado, é lindo de ver o engajamento deles com a construção colaborativa de um momento (mesmo que virtual) de homenagear, se despedir e contar algumas histórias sobre o companheiro de se foi. O sentido que faz prepararem algo para enviar para a família da vítima. E quando a empresa apoia este movimento, sem decidir no lugar deles, é uma grande demonstração de Respeito e Acolhimento.

“Percebi que as pessoas não sabiam o quanto era necessário aquele momento.

Elas sabiam que não estavam bem, mas não sabiam traduzir isso em um pedido de ajuda.

Após a realização da ação os resultados foram imediatos, sentiram-se acolhidas na sua dor e conseguiram

entender o momento e projetar a evolução desse sentimento para algo positivo, refletido nas boas lembranças e saudades que ficarão”. 

(R. F., Business Partner de Recursos Humanos de uma empresa de mineração)

Falar em “cuidado ativo”, em “compromisso com a vida”, na travessia desta momento tão caótico e difícil não diz respeito somente à sempre importante tarefa de evitar doenças e acidentes de trabalho. Trata-se, também, de cuidar da não-banalização da morte e do morrer. De considerar que junto com a COVID-19 estamos vivendo a pandemia paralela da fragilidade emocional, do estresse oriundo do gerenciamento da crise, da desolação que as incertezas sobre o futuro nos impõe a todos e todas.

Tratar as perdas com a dignidade que este processo merece é sinal de que podemos ser humanos.

É reafirmar que cada vida importa. As que vão. As que ficam. Todas elas. É acolher a vulnerabilidade como uma força em nossos espaços produtivos.

É garantir que não somos máquinas.

Luto por Covid-19 nos ambientes de trabalho

Por Juliana Bley, mestre psicóloga formada pela Universidade Federal de Santa Catarina. Palestrante do TEDxUFPR, autora do livro “Comportamento Seguro“, assim como Designer e Facilitadora de Aprendizagens. Juliana esteve à frente de grandes movimentos para transformação focada no desenvolvimento de pessoas, empresas e profissionais interessados em viver e trabalhar com mais Saúde, Integridade, Inovação e Cuidado. No seu portfólio atuou em grandes empresas como Natura, Petrobras, Mondelez, Vale.

 

Ouça o PodCast RHPraVocê, episódio 52, “Quando a resiliência vira algo tóxico?” com Carla Tieppo, neurocientista da Santa Casa. Clique no app abaixo:

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