O efeito Gattaca: uso de dados genéticos e de saúde do trabalhador no ambiente de trabalho

Em 1990, uma colaboração internacional deu início ao Projeto Genoma Humano (Human Genome Project – HGP), com o objetivo de mapear o genoma humano. O projeto chegou à conclusão oficial apenas em 2003. Desde o início, o HGP abordou questões éticas, sociais e legais. Além disso, impulsionou a teoria do determinismo genético.

Essa teoria defende que os genes determinam ou explicam tudo sobre uma pessoa. Como consequência, aumentaram as preocupações sobre a possível discriminação genética. Essas questões foram retratadas no filme Gattaca (1997), cujo título faz referência às letras iniciais dos nucleotídeos que compõem o código genético humano.

O enredo explora um futuro distópico em que a manipulação genética determina o destino das pessoas (eugenia). No filme, os "válidos" são aqueles que foram geneticamente modificados para possuir traços desejáveis, enquanto os "inválidos" são aqueles concebidos naturalmente, muitas vezes enfrentando discriminação e oportunidades limitadas.

Genética no trabalho: avanços, desafios e proteção legal

Embora o determinismo genético absoluto descrito em Gattaca ainda esteja distante, a aplicação de testes e manipulação genética cresce exponencialmente.

Por exemplo, médicos realizam testes genéticos pré-implantacionais para prevenir doenças hereditárias. Além disso, exames genéticos ajudam a confirmar ancestralidade, diagnosticar enfermidades e personalizar tratamentos médicos.

Essas práticas têm implicações profundas no ambiente jurídico. O acesso facilitado a testes genéticos levou várias nações a regulamentarem seu uso, criando limites e proteções legais.

Os Estados Unidos, em 2008, promulgaram o Genetic Infomation Nondiscrimation Act (GINA). O GINA, entre outras coisas, proíbe a utilização de “informações genéticas” por empregadores, proibindo-lhes de solicitar, exigir ou comprar dados genéticos de seus empregados.

Em 2012, no caso Poore v. Peterbilt Bristol LLC, o tribunal decidiu que a menção de Poore sobre a esclerose múltipla de sua esposa não configurava “informação genética” para fins da aplicação do GINA. Consequentemente, não haveria irregularidade em sua dispensa.

Este caso trouxe à tona não somente os limites da definição de material genético, mas também a dificuldade de identificar e comprovar o dolo na obtenção e uso dessa informação por parte do empregador.

Genética no trabalho: proteção, desafios e dilemas éticos

No Brasil, embora não haja legislação específica sobre o uso de dados genéticos no ambiente de trabalho, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) classifica “dados genéticos” como sensíveis, exigindo consentimento explícito para seu tratamento.

A LGPD oferece uma camada de proteção, mas ainda existem lacunas que precisam ser preenchidas para lidar de forma eficaz com a discriminação genética.

Casos de discriminação genética, embora raros, já ocorreram no Brasil. Em 2004, uma jogadora da seleção brasileira de voleibol foi afastada após detecção do traço falciforme em exames de rotina.

A Confederação Brasileira de Vôlei justificou a medida alegando riscos à saúde e ao desempenho das atletas portadoras dessa condição, embora a comunidade médica não seja unânime em afirmar que o traço falciforme comprometa a performance esportiva. Esse episódio trouxe à tona o debate sobre o uso ético de informações genéticas no esporte e no trabalho.

A principal questão ética e jurídica que envolve o uso de dados genéticos no ambiente de trabalho surge quando empregadores exigem ou incentivam a realização de testes laboratoriais, especialmente genéticos, em processos seletivos ou durante a vigência do contrato de trabalho.

Testes genéticos no trabalho: proteção ou discriminação?

Tais práticas levantam perguntas críticas:

  • pode o empregador justificar essa demanda com base no bem-estar coletivo ou nas peculiaridades da atividade exercida?
  • pode deixar de contratar ou mesmo dispensar um trabalhador por predisposição genética a determinadas condições de saúde ou indicativos laboratoriais de fragilidade médica?

Teoricamente, poder-se-ia cogitar o pedido de exames em casos de alto risco, como pilotos de avião predispostos a doenças cardíacas ou epilépticas.

A empresa poderia alegar que está cumprindo seu dever de zelar pela saúde dos empregados e clientes, além de contribuir para a prevenção de incidentes decorrentes de condições ou pré-disposições genéticas.

Por analogia, isso se assemelharia à jurisprudência trabalhista que permite, em situações excepcionais, a verificação de antecedentes criminais quando a função exige grau especial de confiança.

Entretanto, a falta de jurisprudência específica e a inexistência de regulamentação clara sobre o tema criam um cenário de incerteza, com grande probabilidade de que a Justiça do Trabalho entenda que a exigência de exames genéticos ou até mesmo médicos em geral extrapole o poder diretivo do empregador, configurando abuso e gerando direito à indenização por danos morais.

Além disso, a Súmula 443 do TST(¹), a Lei 9.029/95 (que proíbe práticas discriminatórias no emprego) e a Convenção 111 da OIT(²), que trata da discriminação em matéria de emprego e profissão, reforçam a vedação a qualquer tipo de tratamento discriminatório.

Testes genéticos no trabalho: entre saúde e riscos legais

A oferta de testes de DNA por parte de empresas, por exemplo, com o argumento de promover a saúde dos empregados ao identificar predisposições genéticas, expõe as organizações a riscos jurídicos significativos.

Mesmo que a empresa não tenha acesso direto às informações específicas dos trabalhadores, uma demissão após a realização dos exames pode gerar suspeitas de discriminação genética.

Esse raciocínio se aplica igualmente aos exames médicos admissionais, periódicos e demissionais. Além disso, o Ministério do Trabalho e Emprego exige que os empregadores realizem exames médicos periódicos conforme a Norma Regulamentadora nº 07.

Os exames fazem parte do poder diretivo e fiscalizatório das empresas ao longo da relação de trabalho. No entanto, os resultados devem ser usados exclusivamente para prevenir riscos e promover a saúde dos trabalhadores.

O TST(³) determina que, diante da pouca jurisprudência sobre o tema, a dispensa logo após exames que indicam anomalias pode configurar uma presunção iuris tantum de discriminação, afastada apenas por provas contrárias.

O empregador acessa ou conhece o resultado do exame diretamente ou por meio do médico do trabalho. Consequentemente, realiza a dispensa pouco tempo após essa ciência.

Por isso, qualquer solicitação de dados genéticos e laboratoriais, quando necessária e legalmente permitida, deve seguir critérios éticos rigorosos, garantindo transparência e respeito aos direitos fundamentais dos trabalhadores para evitar o uso discriminatório dessas informações.

Em termos gerais, até que haja uma regulamentação específica no Brasil, as empresas devem evitar fornecer, incentivar ou exigir exames genéticos de seus empregados. Além disso, a falta de diretrizes claras pode gerar riscos éticos e jurídicos para empregadores e trabalhadores.

Referências

¹Teor da Súmula 443 da SDI-1 do TST: DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. PRESUNÇÃO. EMPREGADO PORTADOR DE DOENÇA GRAVE. ESTIGMA OU PRECONCEITO. DIREITO À REINTEGRAÇÃO. Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego.

²A Convenção nº 111 da OIT trata da discriminação em matéria de emprego e profissão, abordando quaisquer distinções, exclusões ou preferências que comprometam a igualdade de oportunidades ou de tratamento no ambiente de trabalho. O Brasil assinou essa convenção, ratificou-a em 1965 e a incorporou formalmente ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 10.088, de 5 de novembro de 2019, Anexo XXVIII.

³O TST considerou a dispensa discriminatória nos casos em que foram identificadas doenças por meio de exames de rotina ou decorrentes de exames periódicos: Ag-AIRR 0000341-59.2017.5.05.0036, RO em MS 0010869-23.2017.5.03.0000 e AIRR 0001238-11.2017.5.05.0029

dados genéticos no trabalho_foto do autorPor Paulo Peressin, sócio e

 

 

 

 

 

dados genéticos no trabalho_foto da autora

Giulia Caruso, advogada, ambos da área Trabalhista do Lefosse Advogados.

 

 



Por que Candidatos Recusam Ofertas de Emprego?

No Episódio 115 do RH Pra Você Cast, exploramos um tema intrigante: por que alguns candidatos recusam ofertas de emprego?

Um mapeamento realizado pela empresa de recrutamento Intera revelou que 35,46% das ofertas feitas em dezembro de 2021 foram recusadas. Ademais vamos analisar os motivos por trás dessa tendência e discutir estratégias para tornar os processos seletivos mais ágeis e atraentes.

Os Motivos da Recusa
  • Contrapropostas Atraentes: Descobrimos que muitos profissionais optam por ficar em seus empregos atuais quando recebem contrapropostas interessantes. Assim sendo, como lidar com essa situação?
  • Outros Fatores Decisivos: Além das contrapropostas, quais outros motivos levam os candidatos a desistir de uma oferta? Portanto vamos explorar questões como cultura organizacional, benefícios e oportunidades de crescimento.
Estratégias para Processos Seletivos Ágeis e Atraentes
  • Agilidade e Transparência: Como tornar o processo de seleção mais eficiente? Similarmente a agilidade na comunicação e a transparência são essenciais.
  • Experiência do Candidato: O que os candidatos esperam durante o processo seletivo? Sobretudo como criar uma experiência positiva que os incentive a aceitar a oferta?

Nesse episódio, contamos com a expertise de Felipe Beranger, responsável pelo estudo e pela área de Sucesso do Talento da Intera, além das reflexões do CEO do Grupo TopRH, Daniel Consani, e da jornalista, Gabriela Ferigato. Não perca essa conversa relevante para recrutadores e profissionais de RH!

Não se esqueça de seguir nosso podcast e interagir em nossas redes sociais:

Facebook
Instagram
LinkedIn
YouTube