O seriado Ruptura (Severance, Apple TV, 2022) tem como mote central uma empresa em que um grupo de funcionários opta por receber um implante no cérebro de modo que, ao entrar no andar em que trabalham, não conseguem se lembrar de qualquer aspecto de sua vida pessoal, e, ao saírem da empresa, não guardam qualquer traço de memória do que ocorre no trabalho.
O desenrolar da trama mostra as consequências cruéis desta separação radical, porém várias das situações apresentadas cabem muito bem, de maneira metafórica, no nosso dia a dia de trabalho nas empresas.
O equilíbrio vida e trabalho se tornou uma expressão tão comum que não percebemos que separa, em si mesma, a vida do trabalho, como partes que precisam se equilibrar.
Mas será que é possível agir e ser uma só individualidade – íntegra e comum – tanto no ambiente pessoal quanto no ambiente de trabalho? Não seria incrível poder ter uma relação transparente e aberta, ser autêntico o tempo todo no ambiente profissional?
É uma proposição que tem ganhado muita força nos últimos anos. Autores e palestrantes têm propagado este ideal, com títulos como “a coragem de ser você mesmo”, e “bring your whole self to work” (algo como “traga seu eu integral para o trabalho”).
No esforço de atrair talentos empresas comunicam este mesmo ideal por meio de valores culturais explícitos ou depoimentos de funcionários atestando que “aqui eu posso ser eu mesmo”.
Na aparência este ideal traz um enorme sentido, pois cada indivíduo poderia então expressar sua individualidade autêntica no ambiente de trabalho, reduzindo potenciais conflitos por ter que ajustar comportamentos, adaptar linguagem, frear impulsos.
Porém, como é de costume no caso destas ondas de ideais de gestão, o problema chave está na falta de coerência ao se exagerar e banalizar uma ideia para torná-la produto de consumo em massa.
Há um efeito colateral perverso neste movimento idealista: o peso e a responsabilidade de “trazer seu eu integral” para viver seu propósito mais profundo e ser feliz no trabalho é colocado nas costas de cada indivíduo.
A inescapável frustração por não atingir tão encantadora meta, temperada por conflitos e distúrbios ocorridos na busca pela expressão “autêntica” na rotina de trabalho, gera um enorme – e desnecessário desgaste emocional e mental
A companhia e o trabalho
Ainda convivemos com a herança de um modelo mental de gestão mecanicista oriundo da revolução industrial, que lida com os humanos como recursos, uma força de trabalho, um ativo a ser contabilizado e explorado.
Embora concreta, esta é apenas uma das dimensões da realidade. A teia de relações subjetivas que rege toda a dinâmica de geração de conhecimento e experiências da organização, conformando sua cultura e capacidade de gerar valor, é formada por seres humanos que trabalham juntos.
Trabalhar junto é a origem do termo companhia. Para trabalharmos juntos em uma companhia é necessário que as relações sejam pautadas por um conjunto de regras compartilhadas.
Para continuarmos a trabalhar juntos será necessário que esta companhia tenha saúde na forma de resultados positivos, e para isso será necessário organizar formas de coordenação e decisão nestas relações complexas de pessoas trabalhando juntas.
Todos estes aspectos demandam e conformam a constituição de um contrato social, parcialmente explícito, que rege a relação entre uma personalidade jurídica – a companhia – e pessoas naturais – os funcionários.
O contrato contempla limites, práticas, responsabilidades e princípios, ou seja, a ética da companhia que precisa ser respeitada para viabilizar o “trabalhar junto”. Ao ajustarmos nossos comportamentos a esta ética, obviamente não podemos ser integralmente autênticos.
Será necessário conformar hábitos em prol do coletivo, regular a linguagem, encontrar os códigos adequados para fazer-se entender.
Será importante resguardar aspectos das emoções, parte das dores mais íntimas, para que a personalidade possa continuar a atuar no ambiente coletivo de forma segura psicologicamente.
Um conceito idealizado e banalizado de autenticidade da personalidade (“ser eu mesmo”), ao não tratar com o devido cuidado os significados embutidos, soa pueril e acaba gerando antipatia em boa parte da liderança estabelecida nas organizações.
O desenvolvimento viável e coerente
O que necessitamos é uma abordagem mais pragmática, que impulsione a mudança sustentada para um nível mais maduro na relação entre as pessoas e as organizações.
Do lado da companhia é fundamental avaliar o contexto de época, sociedade, e mercado em que opera, de modo a compor uma cultura organizacional que seja sinérgica com o posicionamento estratégico, atrativa no mercado de talentos, e harmônica com sua identidade, sua essência.
Assim será possível impulsionar e desenvolver as práticas, ambientes e diretrizes coerentes com esta cultura, em especial considerando os sistemas de reconhecimento e incentivo, os hábitos de tomada de decisão e os critérios de seleção e promoção de líderes.
Do lado individual devemos ser ainda mais pragmáticos: o trabalho, com seus limites e incongruências, é a ação na qual investimos larga parte de nossa vida e energia, sendo por isso, naturalmente, um potencial laboratório de desenvolvimento.
Podemos abordar as relações no ambiente do trabalho como uma oportunidade de auto-desenvolvimento, uma jornada de aprendizagem para polir nossos sistemas mentais e emocionais para uma atuação mais autônoma no mundo.
Porém todo este processo depende de uma condição prévia: a construção de um significado próprio.
O indivíduo deve ter os meios e o apoio da companhia para refletir de maneira consistente sobre sua trajetória, aspirações e valores em relação à cultura, ambiente e práticas, e assim poder decidir se é viável engajar-se, e em que medida, neste ambiente de trabalho.
Sem uma abordagem realista continuaremos a ter companhias embaladas em propósitos e princípios inexequíveis e incongruentes, e pessoas sofrendo para parecerem ser quem acham que devem ser, em um teatro corporativo incompatível com o potencial de impacto positivo que as companhias – e as pessoas – podem ter no mundo.
Por Marcos Thiele, sócio da Adigo Desenvolvimento. Engenheiro de produção formado pela Escola Politécnica da USP, mestre em administração pela Faculdade de Economia e Administração da USP, formado em consultoria e facilitação pela Adigo e Coach pelo Instituto Ecosocial. Possui experiência em consultoria estratégica desde 2010; foi sócio da Ayus – desenvolvimento organizacional e formulação estratégica – e diretor da Thymus Branding – consultoria de estratégia da marca e negócios.
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