De tempos em tempos, episódios como o do grupo Americanas, que vem ocupando enorme espaço em todas as mídias, sacodem o mercado com um novo “despertador” para se verificar se os balanços realmente refletem a realidade financeira das empresas.

Foi o que aconteceu no “crash” da bolsa americana em 2008, quando créditos imobiliários “podres” se espalharam em centenas de bancos e instituições de crédito, inclusive europeias, espalhando o “câncer” em todo o sistema financeiro. Grandes bancos e firmas de auditorias quebraram.

Em acontecimentos de grande porte, fraudes e práticas nocivas quanto à ética são tratados com impessoalidade, quando os escândalos já se tornam públicos. Dá-se a impressão de que um “sistema invisível” foi o causador de tudo, levando ao desastre.

Na verdade, o gatilho desta enfermidade social, começa com a menor das células: o indivíduo. Além daqueles que se tornaram as células “cancerosas”, com certeza há muitos outros com o conhecimento técnico suficiente para saber que algo está errado. No entanto, com o seu silêncio, passam a ser células atingidas, que, no fim, levam à “metástase”. Com toda a certeza, em um grupo de porte como as Americanas, havia contabilistas de profundo conhecimento que estavam enxergando o que ocorria nos balanços.

Constatações assim podem ocorrer no dia a dia e não se limitam apenas a lançamentos contábeis impróprios. Podem estar em um informações privilegiadas passadas a clientes e concorrentes, relatórios de despesas, contagens de inventário, concorrências suspeitas, o aceite de presentes e favores desproporcionais de clientes. Enfim, há uma lista infindável de “faróis vermelhos”, os quais nunca devem ser ultrapassados. Se a sua companhia tiver um código de conduta, vai estar tudo lá.

O que Sérgio Rial, ex-CEO das Americanas fez, tem uma expressão na língua inglesa que é muito apropriada e bastante conhecida para fatos deste tipo: “whistleblower”, ou seja, aquele que “assopra o apito”. Tendo feito isto em uma gestão de apenas dez dias, não há como ter sido imputado por qualquer responsabilidade.

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No entanto, profissionais de todos os tipos, em todas as áreas e níveis hierárquicos, podem vir a ter conhecimento de irregularidades, sob a sua própria gestão ou de pares. Vem aí o momento da decisão crucial: vou “assoprar o apito”, ou serei mais uma “célula contaminada”?

Infelizmente, muitas companhias ficam tão incomodadas com o “volume do apito”, que ao invés de irem fundo na causa-raiz do problema e resolvê-lo, acabam por “matar o mensageiro”, como se a punição pública fosse a solução. Expurgam assim suas próprias culpas, mas as “células cancerosas” continuam a se multiplicar.

Por outro lado, inúmeros casos são muito bem-sucedidos, e aqueles que “assopram o apito” têm um alto reconhecimento e suas carreiras são mais bem pavimentadas. 

Lembro-me de uma experiência pessoal quando trabalhava na área de equipamentos médicos de alta tecnologia. Nosso quadro de especialistas detectou incongruências técnicas em um edital de concorrência para uma aquisição de porte de um dos estados da federação. Estes pontos favoreciam apenas um dos concorrentes, o qual foi muito rapidamente identificado.

Todo um “castelo de cartas” ruiu naquela repartição pública, funcionários foram transferidos e a concorrência simplesmente cancelada. Nosso conselheiro legal foi convidado para uma reunião global da companhia a fim de expor uma prática de sucesso. Este foi o caso de um “apito externo”. Os internos, geralmente, são bastante complexos.

O ponto aqui tratado não se refere a causas e efeitos ou riscos e recompensas. Não há também dilemas éticos, pois estes existem quando há uma dúvida real do caminho a ser seguido. Estamos falando, na realidade, da coragem ética para se dar o passo e “soar o apito”, quando você toma conhecimento de que algo está errado. 

O grande mérito, está justamente na insegurança a respeito das consequências. O que prevalece são os princípios e práticas éticas, junto com a convicção técnica, moral ou ambas, de que algo não está de acordo com as diretrizes da companhia na qual você trabalha.

Infelizmente, muito do que vem das ficções policiais, filmes e séries, não raramente tratam aqueles que desafiam sistemas corruptos de forma negativa, taxando de “delatores” ou “ratos”. Na realidade são os verdadeiros heróis, onde o “espírito de corpo” não foi mais forte do que os princípios e as convicções éticas de um indivíduo. 

Importante lembrar que, quando algo não vai bem no time em razão de qualquer irregularidade, você se torna o único absolutamente responsável por sua própria carreira. Não “afunde com o barco”, só para fazer companhia aos seus grandes “amigos”.

Em uma das companhias globais para as quais trabalhei, havia uma prática para os momentos de dúvida quanto a questões éticas nos negócios. Chamava-se o “teste da primeira página dos jornais”. Na hora de ir em frente com qualquer ação, se não tivéssemos realmente certeza do passo a ser dado, tínhamos que imaginar aquela mesma ação retratada no dia seguinte, nas primeiras páginas do jornal. Era muito fácil decidir.

No caso Americanas, foi mesmo para as primeiras páginas…tarde demais! Se alguém pensasse neste teste no primeiro ato, decerto a tragédia seria evitada. O teste se torna realidade com muito mais frequência do que podemos imaginar.

Grandes fraudes e escândalos corporativos geralmente começam com pequenas coisas, quase que superficiais. Nesses casos você sempre terá diante de si a decisão: ser uma “célula resistente e não contaminada” ou fazer parte da “imperceptível e silenciosa metástase”. 

Nesse caso, quando o paciente perceber, será tarde demais e você estará fazendo parte das “células cancerosas”.

Caso Americanas: Ética nos negócios e o "efeito metástase"

Por Danilo TalanskasAutor do livro Lições de Guerra – Vencendo as Batalhas de Sua Carreira, foi o CEO de três multinacionais: GE Healthcare, Rockwell Automation e Elevadores Otis. Em paralelo à sua carreira como executivo, atuou como palestrante e professor em cursos de pós-graduação nas áreas de Estratégia, Ética e Negócios Internacionais. É formado em Administração de Empresas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, com MBA pela Universidade de Brigham Young (EUA) e é mestre em Administração pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

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