Na última semana, uma decisão da Justiça do Trabalho em São Paulo ganhou repercussão. Por unanimidade, a demissão por justa causa de uma auxiliar de limpeza foi confirmada em primeira instância pela 13ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região. O motivo da dispensa da funcionária de um hospital infantil de São Caetano do Sul, em São Paulo, foi a recusa da colaboradora em se vacinar contra a Covid-19, o que ocorreu duas vezes.

O julgamento abriu precedente para um natural questionamento: profissionais que recusarem a imunização podem ser demitidos por justa causa? No caso em questão, o desembargador Roberto Barros da Silva, relator do processo, declarou que diante de um cenário pandêmico o interesse coletivo se sobressai às intenções individuais. Portanto, segundo ele, a funcionária pôs em risco a saúde dos pacientes e também dos outros colaboradores da unidade hospitalar. 

Porém, será que a mesma regra é válida para qualquer tipo de organização? E, no todo, quais determinações já existem para profissionais que optarem por não se vacinar? Para responder estes e outros questionamentos, o RH Pra Você conversou com a advogada trabalhista e especialista em direito sindical, Maria Lucia Benhame, sócia do Benhame Sociedade de Advogados. Confira como as empresas podem reagir à discussão sobre a vacinação e o que muda nos seus direitos trabalhistas.

Dra. Maria Lucia Benhame

Dra. Maria Lucia Benhame, advogada trabalhista e especialista em direito sindical – Foto por Dani Yin

RPV: Doutora, creio que o primeiro questionamento, diante de todas as discussões sobre como a opção ou não pela vacina será tratada no mundo corporativo, é: já existe a obrigatoriedade pela imunização no mercado de trabalho?

Dra. Maria Lucia: O caso do julgamento da empregada do hospital gerou algumas questões, mas também algumas confusões a respeito. O julgado em questão esclarece que a vacina pode ser instituída como obrigatória, mas para que isso ocorra é necessário que haja uma norma estatal, federal, estadual ou municipal que determine a obrigatoriedade. 

Se existir esta lei, a sanção estará nela estabelecida. Porém, não se pode forçar alguém a tomar. Seria possível, por exemplo, impedir que a pessoa viaje para o exterior, que frequente determinados lugares, mas não se poderia obrigá-la a se imunizar. Não existe, hoje, nenhuma norma que transforme a vacina em algo obrigatório. 

RPV: O julgamento da faxineira do hospital é, portanto, um caso à parte?

Dra. Maria Lucia: A diferença desse julgado é o fato de envolver a área de saúde. O trabalhador na área de saúde tem um regramento específico de normas de segurança e medicina do trabalho, especialmente a NR-32, a norma regulamentadora que trata da vacinação. Então, é uma situação em que há o risco interno na empresa porque o colaborador está em uma área de risco biológico que envolve não só a Covid-19, mas outras doenças infectocontagiosas. A NR-32 trata da vacinação dos empregados e de tudo que o PCMSO (Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional) vai delimitar baseado numa análise de risco que é o PPRA (Programa de Prevenção de Riscos Ambientais).

Toda doença infectocontagiosa em hospital é doença do trabalho, porque a presunção é de que a possibilidade do empregado pegá-la no ambiente em questão é maior do que pegar na rua.

RPV: Qual a diferença, então, para uma empresa que não é da área da saúde?

Dra. Maria Lucia: A diferença é que para estas empresas o risco de uma doença é social, está em toda amplitude, não é interno. Se essa organização diz que vai obrigar o seu colaborador a tomar a vacina e vai puni-lo caso ele não o faça, o que está sendo dito é que ela tem a obrigação de controlar o ambiente de trabalho. Todo empregador deve controlar o ambiente de trabalho, mas para ficar claro, nesse caso, é necessário incluir no PPRA e no PCMSO que há a existência do risco ocupacional. E absolutamente qualquer caso de Covid-19 nessa empresa vai ser doença do trabalho, porque o risco é reconhecido. 

Mas como vou obrigar a pessoa a tomar vacina – e por isso não existe ainda norma estatal – se ainda não tem imunizante para todos? Quando se observa a orientação do Ministério Público do Trabalho, que não é uma norma porque o órgão não as emite, ao ser dito que o trabalhador pode ser punido, consta a necessidade da inclusão da Covid-19 no PCMSO porque ela se torna doença ocupacional. Ela só é presumida como doença ocupacional, hoje, na área da saúde, como os laboratórios. Em todas as empresas o risco biológico é inerente ao local de trabalho ou à função do empregado. 

O contexto do caso da faxineira é outro e o acórdão deixa claro que o ocorrido foi em área de risco. O PCMSO estabeleceu a vacinação como obrigatória, a empregada se recusou a tomar, foi advertida e ao insistir na recusa tomou a justa causa. Decisões da área da saúde não podem ser extrapoladas para qualquer tipo de empresa, é uma aplicação errada da lei. Pode vir a ser obrigatório, não vai ferir a liberdade individual, mas ainda não há a obrigatoriedade fora dos casos específicos. 

RPV: Enquanto não existe a obrigatoriedade, o que pode ou não acontecer, independentemente disso a empresa “comum” pode ter a iniciativa de usar a não-vacinação como argumento para demitir ou recusar um candidato?

Dra. Maria Lucia: Não. Enquanto não existir uma lei que assim determine, entendo que não é possível. Vai contra exatamente o que o STF determinou que é preciso haver, que é a norma legal. E a suposta lei, caso exista, vai estabelecer qual é a restrição àquela pessoa que, apta para se vacinar, optar por não o fazer. E a ameaça de demissão por justa causa é coação. 

Imagine o cenário no qual o empregador diz a você que vai te demitir por justa causa. Nisso, com receio, você cede, toma vacina, mas ocorre algum problema que termina em óbito. Se o empregador se sente no poder de determinar que você é obrigado a se vacinar, sendo que nenhuma lei diz isso, a responsabilidade é inteiramente dele caso haja sequela ou morte.

O que o empregador pode fazer é conscientizar sobre a importância de se vacinar, tanto para saúde individual quanto coletiva. Mas jamais promover ação à força.

RPV: Vimos muitos gestores incentivando que os empregados buscassem o suposto tratamento precoce contra a Covid ou até mesmo comprando e distribuindo o chamado Kit-Covid a seus empregados. A mesma lógica do empregador não poder exigir que o empregado se vacine é aplicável ao incentivo e/ou distribuição de medicamentos em ambiente de trabalho?

Dra. Maria Lucia: Nada que seja médico pode ser decidido senão por um profissional médico. Seja um tratamento precoce ou seja dar para uma pessoa um remédio para dor de cabeça, isso não pode ser feito pelo empregador. 

As empresas não podem ter uma mini farmácia, um kit de remédios. Decisões assim são restritas a médicos.

RPV: Outro tópico importante em meio à vacinação é a retomada aos escritórios. Muitos colaboradores, mesmo aqueles que estão vacinados, ainda temem retomar e por vezes se negam a voltar para o ambiente presencial mesmo após a solicitação do empregador. O contexto pandêmico justifica que os colaboradores possam tomar essa decisão?

Dra. Maria Lucia: O que cabe ao empregador? Ter um ambiente de trabalho seguro. Como? Com as medidas de prevenção de contaminação. A vacina não é um programa de prevenção de contaminação. É do poder diretivo do empregador, desde que tenha na empresa todas as condições de isolamento, prevenção e higiene, exigir o retorno do colaborador. 

Recomendo que as pessoas tenham muito cuidado com as redes sociais porque ela pode ser uma ferramenta que justifique justa causa. Se você se recusa a voltar ao trabalho por medo da pandemia, mas sai para festas e outros lugares, o empregador pode te dispensar.

RPV: Um dos fatores que traz insegurança e pesa para que o trabalhador se sinta confortável em voltar é o transporte público. Se o empregador exige o retorno e o profissional se contamina durante o trajeto, é considerado acidente de percurso?

Dra. Maria Lucia: Sim, casos assim são acidentes de percurso. Isso torna questionável, por exemplo, a lógica que muitos municípios adotaram de reduzir a escala de transporte público, uma vez que isso pode aumentar o risco do trabalhador se contaminar.

RPV: Supondo que uma norma estatal que determine a obrigatoriedade da vacinação por parte dos empregados venha a existir, as empresas não poderão, em nenhuma circunstância, poder contar com algum colaborador que mesmo com a norma escolha não tomar a vacina? É difícil, claro, fazer previsões e falar de algo que só está em discussão e ainda não em prática, mas qual seria a tendência da determinação em relação a isso? Pode ser algo discriminatório?

Dra. Maria Lucia: O STF diz que a liberdade das pessoas não será ferida. Mais uma vez, a vacina poderá ser obrigatória, mas não poderá ser forçada. Se eu tenho, por exemplo, uma restrição religiosa, o que o empregador vai poder fazer em relação a isso? Enquanto a lei não existe, é uma questão que não há resposta. Ela é quem vai decidir quais serão as restrições, caso seja sancionada.

Quando se fala em justa causa, se fala em insubordinação porque você exigiu que seu empregado tomasse a vacina e ele não tomou. Mas a insubordinação, que é prevista na CLT, se refere ao que é o poder diretivo do empregador. E ele não tem o poder de obrigar alguém a se vacinar – reforçando mais uma vez a diferenciação da área de saúde para outras áreas. É um exercício de futurologia. E há outras questões que devem ser pensadas. Por exemplo, como agir com um colaborador cuja função exige viagens internacionais, mas não quer se vacinar? Há países que não vão aceitar sua entrada. A discussão vai muito além de só ser obrigatório ou não. No meu entendimento, hoje, situações fora da área de saúde ou que não estejam descritas em PCMSO e PPRA não podem terminar em justa causa. 

RPV: Não sendo uma justa causa, mas uma demissão sem justa causa, o cenário é o mesmo

Dra. Maria Lucia: Sim. Argumentar que o colaborador foi demitido porque não quis se vacinar pode ser considerado discriminação. A vacina da Covid-19 não impede que você contamine ou seja contaminado por outra pessoa. O que ela faz é reduzir essa possibilidade e proporcionar uma versão mais branda da doença.

Para saber mais

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Por Bruno Piai