“Desde abril do ano passado comecei a trabalhar em home office. Até gosto, mas comecei a sentir desgaste. Prefiro estar com pessoas, ir ao escritório, trabalhar por lá. Há um mês (agosto), a empresa reabriu o escritório e o RH mandou um comunicado falando que, quem desejar voltar, agora tem essa opção. Foi um mix de sensações. Me animei, mas ao mesmo tempo entrei em desespero. Só consigo imaginar que, se entrar no metrô, vou sair de lá com Covid-19.”

O relato é de um analista administrativo que pediu para não expormos o seu nome, mas que chamaremos de Sérgio. O motivo para Sérgio não querer revelar sua identidade remete a como a relação entre líderes e liderados nem sempre é aberta e de fácil comunicação. 

“Meu chefe teve Covid em agosto do ano passado, mas não teve sintomas. Acha que a doença é, de certa forma, supervalorizada. Se eu disser a ele que prefiro seguir trabalhando de casa porque me sinto mais produtivo, teremos um ponto a favor do home office. Se eu disser que tenho medo de pegar o transporte público, é seguro que vou tomar uma chamada de atenção”.

Tal falta de comunicação é um problema para que, muitos colaboradores, assim como Sérgio, exponham um de seus principais receios em relação à retomada aos escritórios: a mobilidade urbana. Com o ritmo alto da vacinação em algumas cidades brasileiras – como é o caso de São Paulo, onde o analista vive e trabalha -, algumas organizações começaram a voltar aos escritórios ou a planejar para breve a retomada. 

Porém, por mais que todos os protocolos de segurança sejam seguidos à risca internamente, as empresas nem sempre conseguem controlar os fatores externos. E, pior, nem sempre elas compreendem o peso destes fatores para a saúde mental de seus colaboradores.

Retomar não é tão simples e significa muito mais do que um grupo de pessoas em um escritório

De acordo com o psicólogo organizacional Leonardo Furlan, por mais que algumas empresas estejam ansiosas para a retomada, há uma série de fatores que precisam ser levados em consideração antes do martelo ser batido.

“Antes de tudo, precisamos quebrar um estigma: não é porque muitas pessoas não puderam fazer home office e não pararam durante a pandemia, que quem teve a oportunidade de fazer o isolamento social deve voltar à rotina de antes e fim de papo porque teve um luxo que outras pessoas não tiveram. É compreensível para quem está de fora ter a percepção de que há um certo comodismo por trás, mas nem sempre é assim. Há fatores emocionais que pesam muito”, pontua.

O especialista esclarece, portanto, que a transição para o retorno aos escritórios precisa ser feita com calma. “Como gestor, você quer que as pessoas tenham o máximo de produtividade e muitas delas alavancaram o seu potencial trabalhando de casa. Embora o contexto pandêmico seja fortemente impactante, são pessoas que ganharam mais tempo para a família ou para se dedicar a estudos ou hobbies. Imagine que você tem um escritório bem estabelecido em casa, o que te motiva a voltar para o trânsito, para o transporte público caótico? Se for uma transição com o intuito de ser tudo como era antes, a tendência é que sua produtividade desabe. Você sai de uma situação positiva que, na sua cabeça, não há razão para não ser seguida”.

Quanto ao fator medo, é válido destacar que mesmo aqueles que tomaram as duas doses da vacina podem não se sentir prontos para voltar aos escritórios. Mais uma vez o psicólogo deixa claro que nem sempre há algum comodismo por trás, mas sim a forma como a mente lida com o panorama da pandemia.

“Não que fosse necessária uma pandemia para isso, mas ela expôs ainda mais as nossas desigualdades. Muitas pessoas, por falta de opção, passaram a viver uma cultura do medo. Não é fácil sair de casa para trabalhar sabendo que, ao retornar, ela pode estar contaminada e passar o vírus para a família. E o grande mal disso é que, para se adaptar, inevitavelmente o medo acaba sendo naturalizado. Se você pega horário de pico todos os dias, sente que a Covid-19 vai chegar a qualquer instante e aceita. O cuidado não é o mesmo. Sente que não tem mais controle, você é obrigado a mergulhar de cabeça num caos e sabe que não dá para passar metade do dia em medo ou desesperado. E quem estava em home office, em isolamento social, com a retomada está sendo atirado nesse cenário. Enquanto outros lutam com um leão por dia, você se sente jogado em uma cova com vários e sem ter como se defender”.

O fator mobilidade urbana e o que o RH deve fazer

O caso de Sérgio conta com um agravante. Embora ele esteja vacinado com as duas doses da vacina contra a Covid-19, o analista conta que seu pai não tem a intenção de se vacinar, por ora, de se vacinar, o que aumenta sua preocupação.

“Meu pai morava sozinho e quando a pandemia começou, trouxe ele para minha casa para poder cuidar dele. Como ele teve problemas de saúde recentes, ainda não vai voltar a morar só, como deseja. E como ele não quer tomar a vacina, minha preocupação aumenta. A vacina me protege, mas não impede que eu me contamine e transmita. Não tenho carro, mas há perto de casa farmácia, mercado, banco e afins. Nos adaptamos na medida do possível. Mas pegar um metrô lotado, ida e volta, todos os dias, vai fazer com que eu perca totalmente o controle”, desabafa.

Furlan recomenda que as empresas façam a retomada em um ritmo lento e ainda flexível. Primeiro, os gestores devem avaliar se realmente a produtividade sofreu quedas a ponto de justificar uma aceleração da volta ao escritório. Depois, ele recomenda que os RHs conversem com os colaboradores e entendam como está a realidade de cada um deles, assim identificando quem se sente confortável, quem não e por qual razão. 

“O contexto familiar tem peso. Há pais que ainda não se sentem bem em deixar seus filhos nas escolas ou nas creches. Há pessoas que perderam entes ou amigos queridos para a Covid. Há uma série de situações que precisam ser respeitadas. A pandemia fez aumentar os índices de medo, depressão, ansiedade, burnout e uma série de outras doenças. O modus operandi não pode ser baseado no desejo de um colaborador voltar. Ele não é regra. Todos têm que ser ouvidos.”

Quanto à mobilidade, a PUC do Chile, em parceria com o instituto de pesquisa global WRI, realizou um estudo nas principais capitais brasileiras e sul-americanas e identificou que nas nove cidades estudadas (Belo Horizonte, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo foram as brasileiras), 50% dos entrevistados reduziram ou pararam com o uso de transporte público por medo de contaminação.

“A aglomeração do transporte coletivo é intensa. Festas, passeios na praia e afins, são coisas que você pode evitar. Não está seguro, não vá. Em relação ao transporte coletivo, muitas pessoas não têm opção. Se eu te obrigo a voltar para o trabalho mesmo com medo, ou você engole seco e encara ou você é demitido. É uma situação terrível para o psicológico. As empresas devem ser criativas. Vão voltar? Ofereça uma ajuda de custos para funcionários que moram perto darem carona, pense em fretar uma condução ou até mesmo flexibilize o horário para que o colaborador evite o pico. Não adianta só medir temperatura na entrada ou obrigar uso de máscara, as empresas necessitam ter uma abordagem mais social e humana em um período tão complexo”, finaliza Furlan.

Para saber mais

Quem disse que a discussão sobre a mobilidade urbana terminou. Na verdade ela está só começando e, se você quiser saber mais, confira uma edição especial do podcast Vem Pra Luz sobre o tema. Você confere o papo do time do RH Pra Você com Gustavo Gracitelli, CEO do Bynd (Índice de Mobilidade Corporativa) e Danilo Tamelini, co-fundador e presidente Latam da BusUp, no player abaixo ou clicando aqui.